Por Rui Castro
Para ler e adorar O Falcão Maltês o leitor adulto e experiente só precisa possuir um atributo: saber ler. A linguagem de Dashiell Hammett é seca como um Martini, exatamente como os seus personagens, e foi essa simplicidade a grande contribuição de O Falcão Maltês ao romance policial em 1930, numa época em que o gênero ameaçava transformar-se em coquetel de charadas e palavras cruzadas. E. ah sim, en passant Hammett inventou. com Spade, o moderno detetive americano.
É muito conhecida a implicância do respeitadíssimo crítico Edmund Wilson por Agatha Christie. Nada de mais nisso, porque Wilson era capaz de tudo, inclusive de não gostar de Agatha Christie. O interessante é que Dashiell Hammett tampouco era fã da velhinha. Para Hammett. o crime só devia ser praticado por quem tivesse razões para praticá-lo, e não apenas para produzir um cadáver numa biblioteca. Os bandidos de Hammett não eram muito chegados a bibliotecas. Preferiam mais os speakeasies de São Francisco, e sabiam as senhas de cor. E, na hora de resolver os crimes, os detetives de Hammett não ficavam em casa fumando cachimbo ou cultivando orquídeas. Eles calçavam os gumshoes e iam caçar os bandidos. Em suma, praticar crimes, para Hammett era coisa de profissionais. Resolvê-los, também. E escrever sobre eles. idem.
Dashiell Hammell devia saber o que estava dizendo. Na vida real, ele próprio fora um detetive profissional. a serviço da Pinkerton, a agência particular mais importante do mundo naquele tempo. Era pouco depois da Primeira Guerra, na qual Hammett tinha servido como sargento e contraído tuberculose. Nos hospitais militares, enquanto se recuperava, decidiu que queria escrever. O que não podia ser muito difícil para quem já havia sido office-boy, jornaleiro, caixeiro de loja, cavalariço e estivador. Mas cedo ele descobriu que não tinha nada a dizer – muitos escritores morrem escrevendo e sem saber disso. Assim, tornou-se detetive.
Não há registros de que tenha sido muito brilhante nos vários anos em que trabalhou na Pinkerton, mas o caso mais importante que o detetive Hammett resolveu talvez tenha sido o seu último – e que, por um excesso de princípios da sua parte, impediu-o de realizar o único objetivo que ele parecia ter na vida: ir morar na Austrália. O caso foi assim: uma companhia de seguros contratou a Pinkerton para procurar 200 mil dólares em ouro, que se supunha estarem escondidos num barco australiano de partida para Sidney. A companhia tinha certeza de que o ouro estava no navio e, se a Pinkerton não conseguisse encontrá-lo antes da partida, um de seus detetives seguiria junto para continuar a busca durante a viagem.
Hammett era o detetive escalado, e a oportunidade era boa demais para ser desperdiçada. Fez as malas – decidido a não achar o ouro, mesmo que tropeçasse nele – e foi ao navio simular a busca. O que aconteceu ? Hammett simulou tão bem que achou o ouro antes do navio zarpar. Com isso, perdeu a viagem grátis para a Austrália, descobriu que tinha princípios demais para ser um bom detetive e pediu demissão da Pin-kerton.
A essa altura, suas medalhas de guerra – as cicatrizes no pulmão – tinham voltado a incomodá-lo. Diante das hemorragias, os médicos não lhe deram muito tempo de vida. Hammett decidiu dedicar o seu resto de tempo a fazer algo de que realmente gostasse. Largou mulher e filho e voltou a escrever . Os primeiros contos foram vendidos, em 1923, a revistas tipo X-9, que os americanos chamam de pulp magazines. Pulp pode ser traduzido aproximadamente por porcaria: lixo literário. É só uma questão de rótulo. Edgar Allan Poe, se fosse vivo, também escreveria nelas. E foi então que as hemorragias pararam e o escritor já tinha conseguido firmar a sua reputação. Depois de alguns contos e dos dois primeiros romances, Red Harvest (Safra Vermelha, Brasileinse) e The Dain Curse (Estranha Maldição, Brasiliense), publicados em 1929, ninguém em Nova Iorque considerava pulp uma história de Dashiell Hammett.
Hammett escreveu O Falcão Maltês em 1930. Antes de sair em livro, a história foi publicada em seriado numa revista da época chamada Black Mask. O cheque referente a cada capítulo chegava pelo correio, fazia uma breve escala no bolso de Hammett e seguia direto para o bolso do gerente do hotel em Nova Iorque, que o vivia ameaçando de despejo. O fato de escrever sob pressão talvez explique o seu estilo ríspido, o diálogo áspero e cortante, a pressa em resolver as situações da história.
Os fatos, em O Falcão Maltês, estão sempre à frente do leitor, e este tem que ler depressa para acompanhar o ritmo. Justamente o contrário das hist6rias de detetives de até então; de influência inglesa, nas quais o autor deixava a imaginação do leitor passar à frente, mas lhe concedia um barbantinho para que ele não perdesse o fio da meada. Hammett reciclou o gênero e, em grande parte, por causa do tal gerente ranzinza.
Depois de O Falcão Maltês, Dashiell Hammett só escreveu mais dois romances: The Glass Key ( A chave de Vidro, Brasiliense ) em 1931, e The Thin Man, em 1934. E nada mais, exceto por uma tentativa inaca-bada, Tulip, muitos anos depois. Por que ele teria parado, se estava no auge do sucesso? Hammett nasceu em 1894 e morreu em 1961, mas, de seus 67 anos, apenas 11 – de 1923 a 1934 – foram dedicados a escrever. O resto ele ocupou bebendo, caçando, pescando, indo à guerra, sendo preso e len-do, mas principalmente bebendo. Só vejo uma explicação para isso: seu casamento com Lillian Hellman – a qual, inicialmente apenas Sra. Hammett, se tornaria depois respeitada como autora de The Children’s Eyes e The Little Foxes, peças de grande impacto no teatro moderno. Talvez Hammett achasse que dois escritores num mesmo casal fossem demais.
Continua também sem explicação a razão pela qual, em 1942, aos 48 anos, Hammett voltou ao exército para lutar na Segunda Guerra – nem como conseguiu ser aceito. Serviu no Alasca. Foi a sua segunda guerra mundial como sargento – nem uma divisa a mais no ombro. Em compensação, voltou com uma nova medalha nos pulmões: enfisema. E, na volta da guerra, encontrou um país profundamente mal agradecido.
Em 1951, Hammett foi preso pela Comissão de Atividades Antiamericanas por se recusar a revelar os nomes dos contribuintes a um fundo de fianças para as vítimas do macartismo. “A verdade é que Hammett não sabia o nome de um único contribuinte “, escreveu Lillian Hellman. Por que ele não disse isso no tribunal e se safou? “Não posso”, respondeu Hammett. “Não gosto que policiais ou juízes me digam o que eu devo pensar que a democracia significa”. E então foi dormir e, na manhã seguinte, foi para a cadeia. Passou um ano numa prisão federal na Virgínia, lavando privadas.
Quando saiu estava muito doente. Morreu em 1961, de câncer de pulmão e os últimos dias foram penosos. A tal ponto que, quando Lllina Hellman lhe perguntava: “Dormiu bem, Dash?”, ele respondia: “Não.Acho que ontem fui para a cama meio sóbrio.”