Por Claudio Willer
É lícito, tem cabimento comentar a coletânea de contos de Dashiell Hammett, Tiros na Noite, agora lançada pela Editora Record, na primeira pessoa, em tom autobiográfico?
Ao menos, permitirá que fale de modalidades da leitura e da conexão entre criação literária e vida.
E meu depoimento mostrará que sou inocente! Que me aproximei da obra de Hammett, a ponto de acabar por lê-la toda e escrever um poema em sua homenagem, de modo involuntário. Que não cheguei lá por causa do mito, da projeção na mídia, de Humphrey Bogart no filme de John Huston, das biografias, de Lilian Hellmann, do registro da luta heróica contra o macarthismo. Tudo isso, para mim, veio depois.
No início dos anos 70, tinha à disposição um acervo ilimitado, em edições alemãs, de histórias de crime, detetives e policiais. Não era adepto do gênero. Passei a lê-las com um propósito: melhorar meu alemão. Os pequenos volumes das séries Krimiromanen, Rote Krimi etc., prestavam-se a isso pelo seguinte: alemão erudito é uma coisa, coloquial é outra – daí haver gente que aprende informalmente, falando, e comete erros, enquanto outros estudam a língua pelo caminho formal, mas não adquirem fluência. E aquelas narrativas, traduzidas, a maioria, do inglês, situavam-se a meio caminho entre um repertório e outro, o hochdeutsch, a norma culta, e o vulgar, quase plattdeutsch, possibilitando acesso a ambos.
Por isso, fui em frente. Encarei pilhas de relatos, a maioria de reduzido interesse. Os enredos de investigador inteligente, protagonizados por Nero Wolfe, Poirot etc., capazes de deduzir soluções de crimes, não me atraíam. Nem as histórias com um viés policial, como as de Ed McBain. Erle Stanley Gardner me deixou frio. Edgar Wallace, achei pré-histórico. Reconheci qualidades no arqui-violento James Hadley Chase, capaz de mostrar como eram as coisas pelo lado da bandidagem, especialmente em seu melhor livro, No Orchids for Ms. Blandish (em alemão Ein Grab voll roter Orchideen, um túmulo cheio de orquídeas vermelhas). Impressionou-me um autor chamado Richard Stark, de quem nunca mais vi nada, com sua história, na primeira pessoa, de um criminoso da pesada que empreende uma vingança e acaba arrebentado em uma cama de hospital, jurando que sairia dali para pegar quem o havia traído. E só. Do restante, retinha vocabulário, mais que enredos e construção da narrativa.
Isso, até chegar a vez de Hammett, na edição alemã dos contos de The Continental Op, O Detetive da Continental. OK, confesso que o prefácio de Lilian Hellmann, traçando o perfil de Hammett, despertou minha atenção para o que viria a seguir. Mas aqueles enredos onde predominava a ambivalência, sua linguagem precisa, direta, o estilo inigualável de quem escreve movido por um sentimento de urgência, achando que ia morrer de tuberculose, com pressa de dar seu recado, querendo contar o que havia visto enquanto trabalhava como detetive da agência Pinkerton, retratar a visão de mundo constituída por essa experiência sem perder tempo com literatices, enfeites e exibições de inteligência – tudo isso me mostrou, imediatamente, que estava diante de outra coisa, de algo com nível e propósitos distintos do que havia lido até então.
Com redobrado interesse, peguei, na seqüência, O Falcão Maltês. Daí em diante, não interessava mais tornar-me o homem que sabia alemão, através do método cômodo que havia inventado. Fui atrás das edições brasileiras e americanas. Li tudo: as narrativas longas, Estranha Maldição (The Dain Curse), A Chave de Vidro (The Glass Key), Ceia dos Acusados (The Thin Man), as coletâneas de contos, as publicações póstumas explorando seus fundos de gaveta, mais duas biografias, uma delas piegas, de Diane Johnson, outra não mais que correta, de Richard Layman. Ainda li Raymond Chandler, o autoproclamado seguidor, com sua obra desigual, embora pelo menos com um grande livro, O Longo Adeus; e mais a biografia de Chandler por Frank MacShane. Aventurei-me por autores mais modernos, como Ross MacDonald – mas esses já não me provocaram a mesma impressão, achei-os narradores competentes e não mais que isso. Quanto a Elmore Leonard, principal best-seller do gênero nas últimas décadas, o preferido de Hollywood (sua adaptação mais importante é Jackie Brown, de Tarantino), gostei do tratamento burlesco de personagens, da vivacidade e atualidade – porém, de novo, nada que impelisse a ir atrás do restante da obra.
Assim, foi a obra de Hammett que me pegou e proporcionou uma dessas experiências de revelação literária, leituras que são descobertas, análoga à que havia tido com poetas ou com prosadores qualificados em um repertório mais refinado. O paroxismo da descoberta foi quando, certa noite, abri uma edição dos seus contos do início dos anos 20, do Continental Op e da revista Black Mask, intitulada A Ferradura Dourada, com o excelente estudo introdutório de Steven Marcus, editado pela Civilização Brasileira (Hammett é um fantasma editorial, com as mesmas obras reencarnando no Brasil, sucessivamente, nos anos 30 através da Globo, nos anos 60 e 70 pela Civilização, logo em seguida pela Francisco Alves e Companhia das Letras, e agora na Record). Empreendi uma daquelas leituras de uma enfiada só, começando por volta das 8 para, alta madrugada, apagar simultaneamente o abajur e a consciência ao virar a última página. Despertei com o poema na cabeça, e fui escrevendo enquanto tomava café. Mais tarde acrescentei algo, conferi citações – mas Homenagem a Dashiell Hammett, que a seguir transcrevo, publicado em 1981 em Jardins da Provocação, e que depois andou freqüentando antologias, inclusive, talvez como alusão às tentativas de aprender alemão na origem dessas leituras, Modernismo Brasileiro und die Brasilianische Lyrik der Gegenwart de Curt Meyer-Clason, esse poema saiu de modo espontâneo, direto, embora possa parecer construído, montado peça por peça.
E daí? A propósito de que esse culto, essa apoteose em torno de Hammett? Por várias razões, é claro. Uma delas, que a literatura norte-americana em prosa do século XX tem seus fundamentos em um punhado de narradores de grosso calibre, bem distintos uns dos outros, a maioria deles também grandes personagens biográficos, começando por Jack London e incluindo Hemingway, Fitzgerald, o próprio Hammett, Henry Miller, Malcolm Lowry, Paul Bowles, Jack Kerouac, William Burroughs. Aventureiros na escrita e na vida pessoal. Personagens de si mesmos, com alguma particular comunicação entre o que viveram e escreveram. Sua força vem daí, da autenticidade decorrente de, sendo cultos, nem por isso serem literatos de gabinete, acadêmicos, scholars, formalistas, burocratas da escrita.
Em Hammett, a conexão entre literatura e vida é radical e se processa de modo especialíssimo. Sustentei isso em outras ocasiões, e insisto: o melhor dele são os contos da fase inicial. Com o tempo, ganhou em fôlego e ambição, mas Estranha Maldição (The Dain Curse) é reciclagem de contos, emendados um ao outro. Sua última narrativa, A Ceia dos Acusados (The Thin Man) é, notoriamente, a mais fraca. Mesmo na obra-prima, O Falcão Maltês, há reaproveitamento de contos e inconsistências. Seu livro mais bem-acabado é aquele mais próximo do romance social, A Chave de Vidro. Encerrado o período produtivo de 12 anos, não fez mais nada. Tentou, buscou outros caminhos, saindo da esfera das histórias de detetive, mas não conseguiu nem mesmo expandir lampejos de narrativa psicológica, a exemplo do belo conto Medo de Tiro, que está nesta coletânea, Tiros na Noite, sobre o covarde moribundo que, depois de seu único ato de coragem, quer refazer a vida para ir atrás de todos os que o haviam humilhado.
Que mistério é esse? Como é possível alguém, à medida que se consolida como escritor, que se insere em uma cultura literária (por mais que a desprezasse – contam que, ao saber dos elogios de André Gide, exclamou: Tell that fag to take his hands out of my books! – Mandem essa bicha tirar suas mãos dos meus livros!) e ganha em consciência do que faz, ir perdendo a capacidade de criação? Colocar a culpa no alcoolismo é insatisfatório: basta pensar em Malcolm Lowry, no modo como projetou seu porre no indispensável Under the Volcano, Sob o Vulcão. Ou em Raymond Chandler, que freqüentemente tinha que tratar-se e, mesmo assim, cresceu como narrador ao longo da sua vida, além de oferecer um interessantíssimo contraste biográfico com Hammett, pois o autor de Lady in the Lake, A Dama no Lago, começou como poeta e estudioso de literatura, para depois, aos 40 anos, inserir-se em Black Mask e adotar os relatos de detetive. Percorreram, ambos, Hammett e Chandler, trilhas biográficas opostas.
Quando começou a publicar em revistas, Hammett havia parado de trabalhar como detetive por causa da tuberculose. Escrever era o que lhe restava a fazer. Alguns dizem que escrevem para não morrer: ele escrevia porque iria morrer. Sua escrita inicial é aquela de um revoltado, e também de um cínico, de alguém que não está mais aí, cuja vida perdeu sentido. Sem jamais ser panfletário, quis mostrar, com base no que havia visto e feito para a agência Pinkerton (por exemplo, atuar como fura-greves e presenciar, quieto, a morte encomendada de um líder sindical, conforme bem observado na introdução de Tiros na Noite), que a sociedade era fundada em uma farsa, onde negócios, política e crime se confundiam. Narrativas de investigação, até então, eram constituídas por um dualismo, a polaridade entre investigadores e investigados, bem e mal. Hammett confundiu esses pólos. Para ele, eram parte de um todo, o fluxo caótico que vinha a ser o mundo. Soube retratar o microcosmo, o dia-a-dia do caos. As vívidas descrições de pancadarias em alguns dos contos de Tiros na Noite são metáforas do salve-se quem puder geral.
Metáforas: aqui entramos na questão do Hammett filósofo, do modo como traduz sua visão de mundo. E em suas digressões, interpolações, narrativas embutidas em outra narrativa (mise en abîme, poderíamos dizer, se isso não o ofendesse tanto). A mais significativa, conforme bem observado por Steven Marcus, a história, inserida em O Falcão Maltês, do homem que levantou a tampa da vida, que, depois de escapar por pouco de um cofre lhe cair sobre a cabeça, mudou de vida e de família, para, ao final, em outro lugar, com outra família, continuar levando a mesma vida, fazendo a mesma coisa que antes da experiência de revelação causada pela iminência de morrer. O próprio O Falcão Maltês é uma grande metáfora, onde todos os protagonistas fingem um para o outro e se destroem, na caça a um tesouro dentro de uma estatueta que, na verdade, era vazia, não tinha nada dentro.
O mesmo vale para outras digressões importantes, como a história de náufragos canibais em A Ceia dos Acusados. Já nos contos de Tiros na Noite esse procedimento é utilizado, quando um dos personagens, por sua vez, passa a narrar uma história, a serviço da argumentação pessimista e niilista de que a vida é regida pelo sem-sentido, e tudo fatalmente volta a ser o que era, nada é aquilo que parece ser, tudo é outra coisa.