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O Mexicano

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Mexico

de Os melhores contos de Jack London
Circulo do livro, 1987

Parte 1 de 7

Ninguém conhecia a sua história – pelo menos os da junta não a conheciam. Era o “misteriozinho” deles, o seu “grande patriota”, e à sua moda ele trabalhava duro como eles pelo advento da Revolução Mexicana. ardaram em reconhecê-lo, pois nenhum membro da junta gostava do rapaz.

No primeiro dia em que surgiu nas salas apinhadas e ruidosas, todos suspeitaram que fosse um espião – um daqueles instrumentos do serviço secreto de Díaz. Grande número de seus camaradas se achava nas prisões civis ou militares espalhadas pelos Estados Unidos, e outros, postos a ferros, já estavam sendo conduzidos para o outro lado da fronteira, enfileirados contra os muros de adobe e fuzilados.

À pnmeira vista o rapaz nao os impressionou favoradamente. Pois rapaz ele era, não teria mais de dezoito anos, e não era desenvolvido para a idade. Anunciou-se como Filipe Rivera, e disse que o seu desejo era trabalhar pela revolução. Isso foi tudo – nem uma palavra supérflua, nenhuma explicação ulterior, e ficou esperando. Em seus lábios não pousava um sorriso, nem havia benignidade em seu olhar. O grandalhão e impetuoso Paulino Vera estremeceu por dentro. Ali estava algo proibido, terrível, inescrutável, pois alguma coisa venenosa e serpentina cintilava nos negros olhos do rapaz. Olhos que ardiam como fogo frio, transbordando como que uma vasta amargura concentrada, e ele os fazia lampejar dos rostos dos conspiradores para a máquina de escrever onde a sra. Sethby trabalhava industriosamente.

Seus olhos pousaram nela um instante – aconteceu que ela erguera a vista -, e ela também sentiu uma coisa inominável, que a fez parar. Foi obrigada a reler a página a fim de recuperar o ritmo da carta que redigia.
Paulino Vera olhou, intrigado, para Arellano e Ramos; intrigados, estes devolveram-lhe o olhar, e depois olharam um para o outro. A indecisão da dúvida pairava-lhes nos olhos. Esse rapazinho magro era o Desconhecido, investido de toda a ameaça do Desconhecido. Era irreconhecível, como se estivesse além da bitola característica dos revolucionários ordinários e honestos, cujo ódio feroz a Díaz e à sua tirania era, no fim de contas, o ódio de patriotas ordinários e honestos. Mas havia algo mais – não sabiam o que fosse. Paulino Vera, porém, sempre o mais impulsivo, o mais rápido para agir, saltou para a brecha.
-Muito bem – disse, em tom glacial. -Você diz que quer trabalhar pela revolução. Tire o paletó. Pendure-o acolá. E eu lhe mostro – acompanhe-me – onde estão os baldes e os panos. O soalho está sujo. Comece por esfregá­lo, e também o soalho das outras salas. É preciso limpar as escarradeiras. Depois, as janelas.
– É pela revolução? – perguntou o rapaz.
– É pela revolução – respondeu Paulino Vera. Rivera parecia desconfiar de todos eles, mas foi tirando o paletó.
– Muito bem – disse.

E nada mais. Dia após dia vinha para o trabalho ­ varria, esfregava, limpava. Tirava a cinza dos fogareiros, trazia carvão e acendalhas, e acendia o fogo antes que se sentasse à sua escrivaninha até mesmo o mais enérgico e madrugador dos revolucionários.

– Posso dormir aqui? – perguntou um dia.
– Ah, ah! Então é isso. A mão de Díaz aparecendo! Dormir nas salas da junta quer dizer acesso aos seus segredos, às listas de nomes, aos endereços dos camaradas em solo mexicano. ..
O pedido foi rejeitado, e Rivera nunca mais tocou no assunto. Dormia não se sabia onde, e comia não se sabia onde nem como. Certa vez Arellano ofereceu-Ihe um par de dólares. Rivera recusou o dinheiro com uma sacudidela de cabeça. Quando Paulino Vera interveio, insistindo para que o aceitasse, disse o rapaz:
– Trabalho para a revolução.

É preciso dinheiro para armar uma revolução moderna, e a junta estava sempre em apuros. Seus membros passavam fome e labutavam, e o dia mais longo nunca era bastante longo, mas havia tempos em que parecia que a revolução prosseguiria ou cairia apenas por causa de alguns poucos dólares. Certa vez – a primeira vez -, quando o aluguel da casa se atrasou dois meses e o proprietário ameaçou despejo, foi Filipe Rivera, o rapaz do esfregão, que pôs sessenta dólares de ouro na mesa de May Sethby. E houve outras ocasiões. Trezentas cartas batidas nas ativas máquinas de escrever (pedidos de assistência, de sanções dos grupos trabalhistas organizados, solicitações a editores no tocante a notícias imparciais, protestos contra as arbitrariedades do tratamento dispensado aos revolucionários pelos tribunais dos Estados Unidos) jaziam sem postar, à espera de seIos. O relógio de Paulino Vera já se fora – o antiquado relógio de repetição, de ouro, que havia sido de seu pai. Da mesma forma se consumira a simples aliança de ouro do terceiro dedo de May Sethby. Desesperava-se. Ramos e Arellano cofiavam exasperadamente os compridos bigodes. As cartas precisavam ser postadas, e o correio não dava crédito a compradores de seIos. Foi quando Rivera enfiou o chapéu e saiu. Quando voltou, pôs um milheiro de selos de dois cents na mesa de May Sethby.
– Não será o maldito ouro de Díaz? -disse Paulino aos camaradas.

Estes franziram o sobrolho e ficaram indecisos; mas Filipe Rivera, o faxineiro da revolução, continuou, quando surgia a ocasião, a trazer ouro e prata para uso da junta. Ainda assim, não podiam os revolucionários obrigar-se a gostar dele. Não o conheciam. Suas maneiras eram muito diferentes, e Rivera não fazia confidências, repelindo toda sondagem. Jovem como era, ninguém tinha coragem suficiente para se atrever a interrogá-lo.
– Um grande espírito solitário, talvez. ..Não sei, não sei – disse Arellano, desanimado.
– Não é humano – acrescentou Ramos.
– Tem a alma ferida – disse May Sethby. – Queimaram-se-lhe a luz e a alegria. É como um morto, e no entanto está terrivelmente vivo.
– Passou pelo inferno – disse Paulino Vera. – Ninguém é assim, a menos que tenha passado pelo inferno. .. E ele é ainda uma criança.

Mas não podiam gostar dele; Rivera não falava nunca, jamais oferecia qualquer sugestão, por mínima que fosse. Ficava escutando sem nenhuma expressão, era uma coisa morta, exceto pelos olhos, friamente ardentes, enquanto a conversa dos outros sobre a revolução se alteava e acalorava. Seu olhar passava de rosto para rosto, de interlocutor para interlocutor, furando como verrumas de gelo incandescente, desconcertando e perturbando..
– Espião não é – confidenciou Paulino Vera a May Sethby. – É um patriota – repare bem no que digo -, o maior patriota de todos nós. Sei-o, sinto-o aqui no coração e na cabeça. Mas não o conheço, absolutamente.
– Ele tem mau gênio – disse May Sethby.
– Bem sei – respondeu Paulino, erguendo os ombros. – Olhou-me com aqueles olhos que tem, onde não existe amor: olhos que ameaçam. São selvagens como os de um tigre em fúria. Sei que, se eu traísse a causa, matar-me­ia. Não tem coração. É cruel como o aço, pungente e frio como a neve. É como o luar numa noite de inverno, quando um homem está morrendo congelado em algum solitário pico de montanha. Não tenho medo de Díaz nem de todos os seus assassinos; mas desse rapaz….dele, sim, tenho medo. Digo a verdade: tenho medo. Ele é o sopro da morte.

Todavia, foi Paulino Vera que persuadiu os outros a dar o primeiro encargo de confiança a Rivera. A linha de comunicação entre Los Angeles e a Baixa Califórnia fora interrompida. Três camaradas tinham sido obrigados a cavar suas próprias covas, e em seguida fuzilados e jogados dentro delas. Outros dois haviam ficado prisioneiros em Los Angeles. Juan Alvarado, comandante do governo federal, era um monstro. Invalidava todos os seus planos. Eles já não podiam ter acesso aos revolucionários ativos nem aos incipientes, na Baixa Califórnia. Rivera recebeu instruções e despacharam-no para o sul.

Quando voltou, a linha de comunicação estava restabelecida e Juan Alvarado morto. Acharam-no deitado na cama, com uma faca enterrada no peito até o cabo. Isso excedeu as instruções dadas a Rivera, mas os da junta souberam de todos os seus movimentos. Nada lhe perguntaram. Ele também não disse nada. Entretanto, uns olhavam para os outros, fazendo conjeturas.
– Eu bem disse – comentou Paulino Vera. – Díaz tem mais a temer desse rapaz do que qualquer homem. É implacável. É a mão de Deus.

O mau gênio, mencionado por May Sethby e por todos percebido, evidenciava-se em provas físicas. Ora ele aparecia com um talho no lábio, uma macha negra na face ou um ouvido inchado. Era claro que andara brigando em algum lugar longe do mundo – num lugar onde comia, ganhava dinheiro e se locomovia em caminhos que eram mistério para seus camaradas. Com o decorrer do tempo, dedicou-se a imprimir a folha revolucionária semanal que a junta publicava. Havia ocasiões em que era incapaz de compor os tipos, ou por causa de seus punhos esfolados e doloridos, ou dos polegares machucados e sem forças, ou dos braços, ora um, ora outro, caídos inertes ao longo de seu corpo, enquanto o rosto se lhe fazia tenso com uma dor não confessada.
– Um libertino -dizia Arellano.
– Frequentador de lugares de má fama – dizia Ramos.
– Mas de onde lhe vem o dinheiro ? -perguntava Paulino Vera.
– Ainda hoje, agorinha mesmo, fiquei sabendo que foi ele que pagou a conta do papel de imprensa: cento e quarenta dólares.
– E suas ausênciasdizia May Sethby. – Nunca as explica.
– Arranjemos um espia que o siga – propôs Ramos.
– Eu é que não vou ser esse espia – disse Paulino. – Receio que vocês nunca mais tornassem a ver-me, exceto para me enterrar. Consome-o uma paixão terrível. Nem ao próprio Deus permitirá que se interponha entre ele e ela. – Sinto-me criança perto dele – confessou Ramos.
– Para mim ele é uma força – o primitivo, o lobo selvagem, a cascavel e o bote, a centopéia que aferroa ­ disse Arellano.

– É a revolução encarnada – disse Paulino. – É sua chama e seu espírito, o grito de vingança insaciável que não soa, mas que mata em silêncio. É um anjo destruidor a caminhar nas mudas vigílias da noite.
– Eu podia até chorar por ele – disse May Sethby. – Não conhece ninguém. Odeia a todo mundo. Tolera-nos porque somos instrumentos para o seu desejo. Mas ele é só…é solitário…- E um soluço interrompeu-lhe a voz, enquanto os olhos se lhe marejavam de lágrimas.

Os modos de Rivera eram às vezes verdadeiramente misteriosos. Épocas havia em que passava toda uma semana sem aparecer. Certa vez esteve ausente um mês inteiro. Essas ocasiões eram sempre coroadas pelo seu regresso, quando, sem anúncio ou discurso, depunha moedas de ouro na mesa de May Sethby. Depois, dias e semanas passava-os com a junta. Igualmente, a intervalos irregulares, desaparecia durante o dia inteiro, desde manhã cedo até bem depois do meio-dia. Nessas ocasiões, ficava até tarde. A meia-noite Arellano encontrava-o compondo, com os punhos marcados de inchaços recentes ou talvez com o lábio, ainda há pouco rachado, sangrando.

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