Por Caio Fernando Abreu
Julho de 1982
D de derrelição, desamparo, abandono. Ou, em linguagem jurídica, “abandono voluntário de coisa móvel, com a intenção de não mais a ter para si”. Por exemplo, o corpo? E por que obscena? Pela voz da autora: “…e o que foi a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida”. No vão da escada de sua casa escura, essa obscena Senhora D nos contempla através dos buracos dos olhos das “máscaras de focinhez e espinhos amarelos” que costuma usar. Para falar “dessa coisa que não existe mas é crua e viva, o Tempo”, para cuspir em nosso rosto a pequenez, a perdição humana, para dizer que “ninguém está bem, estamos todos morrendo”. Enquanto se dissolvem no aquário peixes pardos recortados em papel.
Poeta, dramaturga, ficcionista, Hilda Hilst é talvez o nome mais controvertido da literatura brasileira contemporânea. Para alguns críticos, como Léo Gilson Ribeiro, trata-se do “maior escritor vivo em língua portuguesa”. Para outros, simplesmente ilegível, incompreensível em seu código expressivo pessoalíssimo e deliberadamente cifrado. Pairando acima de todas as negações de sua obra, Hilda avança numa viagem cada vez mais ousada, cada vez mais funda.
A história – se é que há uma história aqui – é simples: após a morte do amante, Hillé, a Senhora D, se recolhe ao vão da escada, “um Nada igual ao teu, repensando misérias, tentando escapar, como tu mesmo, contornando um vazio, relembrando”, em direção à própria morte. Numa prosa que se dilata e contrai, às vezes estufada, barroca, repleta de cintilâncias, outras se fazendo navalha, corte seco, a linguagem de Hilda Hilst avança sobre as camisas-de-força da sintaxe para desvendar insuspeitados espaços. O resultado é um texto que, fora de nossa literatura, ao lado de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, só encontraria paralelo em Joyce ou Samuel Beckett. Mais além: é vivo.
Sons, trinados, gritos, urros, rouquidões. Asa. Impossível aventurar-se nestas páginas sem entrega. Inútil municiar-se apenas das armas da razão. Hipnótico, o discurso de Hilda envolve como águas – às vezes lodosas, às vezes claras – e numa vertigem nos arrasta, de susto em susto, cada vez mais para perto daquilo que Joyce chamava de “o selvagem coração da vida”. Onde tudo pode acontecer. De uma facada pelas costas a um apaixonado beijo de amor, “jorrando volúpia e ilusão”. Traiçoeiras e sensuais, as palavras ofegam e palpitam, como se tivessem carne, sangue, músculos, nervos, ossos. E além disso: uma aura impalpável, uma alma indizível. Uma alma que procura cega, obsessiva, pelo invisível que nos disseram haver um dia: Deus.
Como a Senhora D, sem Deus, no fim do milênio, entre miséria, loucura e lixo atômico, para nós mesmos a vida pode ter sido ou – mais terrível – estar sendo somente “uma angústia escura, um nojo negro”. Contra isso, Hilda grita. Como a Senhora D, a obscena, a sapa, a porca, nos vemos ao final também assim, perplexos, nus: “um susto que adquiriu compreensão”. Mas sempre se pode gostar de porcos. Gostar de gente, também. Por amar a condição humana, Hilda escreve. Um olho no divino, um outro em Astaroth. Ninguém sairá ileso. Como não se sai, afinal, da própria vida.