Por Alberto da Costa e Silva
Este é um romance de cavalaria Feérico e estonteate, como os melhores do género Se sua ação transcorre em nosso tempo e em Moçambique, num Moçambique de Mia Couto, limitado pelo Índico sem fim, o sertão também infinito, a tragédia e o sonho, não lhe faltam, dos livros de cavalaria, a paisagem misteriosa (que viaja continuamente, a passar pelos homens, e continuamente se transforma, para assombro de seus olhos, de chameca em floresta, de floresta em savana e de savana em pântanos e praia), nem as aventuras em que se põem à prova a inteligência, a coragem, a fé e a vontade.
Dele tampouco estão ausentes as tentações do Diabo e da Morte, da Carne, da Fome, da Peste e da Guerra, nem os mundos escondidos com os dragões que os guardam, nem a busca obsessiva de um graal, de uma fonte, de um menino fugido ou de um jardim encantado, que já se sabe, à partida, que não se vai encontrar.
Tudo isso, que se inclui na tradição da narrativa e que Mia Couto recebeu com a língua portuguesa, chega-nos banhado pela luz e pelas sombras das Áfricas visíveis e das Áfricas secretas ou imaginadas, de um continente onde nada se tem por inanimado, onde se espera 0 infinito ao alcance da mão, onde um menino pode transformar-se em galo e um novilho em garça (sem aquele deixar de ser menino e o outro, boi), onde os vivos compartem o mesmo espaço com os mortos, os deuses e os espíritos da natureza, e onde são antigas e múltiplas as técnicas de transformar a vida em estórias, conforme aprendemos no Decameron Negro de Frobenius e na Antologia Negra de Blaise Cendrars
De cada página deste romance de Mia Couto sobem murmúrios e cochichos, como se o húmus da terra nos quisesse ditar os seus mistérios, enquanto se desenrolam, em círculo, duas peregrinações de cavaleiros andantes, uma inscrita na outra, mas tendo centros diferentes, de modo que suas circunferências acabam por tocar-se num ponto que, sendo destino, é também recomeço, pois Mia Couto sabe que sua dupla odisséia não termina jamais E porque a desenvolveu como se fosse um contador tradicional de estórias, nela insere numerosos relatos pequeninos – as fábulas e os apólogos que iluminam a trama das viagens e são como radículas a se separarem da raiz principal, antes de novamente a ela se unirem, no rumo daquele mundo subterrâneo, “onde mora 0 primeiro dos mortos”, e que equivale, em grande parte da África, ao céu mediterrânico, riscado pelo Olimpo ou pelo monte Sinai As iras da guerra civil, a crueldade dos campos de deslocados e a prepotência dos que se julgam donos do hoje e da história, assim como a certeza de que os heróis só têm .por posse o medo, reforçam em Mia Couto o querer recompor o mundo, um querer de intensidade semelhante ao daquele homem que passou, numa de suas parábolas, incontáveis anos a cavar a terra, para a invenção de um rio Ao nosso autor não escapa que erguer um farol no sertão pode ajudar a trazer o mar para o deserto E não ignora, como Mallarmé, que o que dizemos se faz, que a palavra também é criadora de vida da vida que temos e da vida como a desejamos. Foi com essa convicção que Mia Couto compôs o seu retábulo sobre uma terra que, ao nosso redor, muda incessantemente de feitio e flora, a caminhar, sonâmbula.
Dos idiomas de Moçambique, o que vem repartir conosco é o português o português que nos é comum, com as surpresas das diferenças que lhe impuseram, ao longo dos séculos, os oceanos, e estas outras, que Mia Couto, como se delas pudesse ter saudades, vai engenhando, tal qual sucedeu a Antônio Brandão de Amorim, ao recontar o que os indios lhe disseram em nheengatu, e a Mário de Andrade, e a Aquilino Ribeiro, e a Dantas Mota, e a Guimarães Rosa, primos no modo como alcançam os nossos olhos e ouvidos ao devolver, como eles, a linguagem à imaginação. Mia Couto imita um dos personagens deste seu cantar de gesta, que escrevia conforme ia sonhando, para aos seus leitores ensinar a sonhar.