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Uma pulp fiction tupiniquim

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Sabe quando você anda cansado de ler as mesmas coisas, seja livro, hq, peça de teatro, roteiro de cinema, e acha tudo pasteurizado, criado para agradar um mercado que só pensa em mesmices, republicações de sucesso e continuações de franquias milionárias? Então… Essa semana, graças a uma graphic novel antiga, abandonada aqui em casa, eu me deparei com o legítimo sentimento de que ainda há gente corajosa produzindo o que quer, do jeito que acredita, sem precisar olhar atrás da nuca para atender à demanda de quem só pensa em faturar e o resto que se dane.

E a premissa foi mais ou menos essa:

Dois caminhoneiros, uma estrada, uma carga indecifrável a quem os entregadores sequer podem ver, interrupções e conflitos durante todo o trajeto.  Resumindo: um trabalho extremamente perigoso. A reunião desses poucos elementos já é o suficiente para termos uma história com requintes de crueldade e morbidez. Sem contar o clima dark proposto pelas aves negras sobrevoando as páginas da revista no começo e no fim da história.

Rafael Grampá, o quadrinista responsável pelo ácido e forte Mesmo Delivery, é isso até a raiz dos cabelos: sarcástico, contundente, afiado como uma lâmina de barbear e sem medir as palavras um segundo sequer. E não tem a menor vergonha de se apropriar de tendências e estilos que vieram se consagrando nas últimas décadas em várias vertentes artísticas. Da novela pulp ao cinema do inconsciente de David Lynch tudo interage com a obra de Grampá, que é múltipla sem fazer esforço.

Em sua incursão por esse universo roadie, obscuro, ele agrega desde as obsessões tarantinescas até um clímax que lembra, em parte, os contos sobrenaturais do mestre do policial Edgar Allan Poe. E para que não venham me acusar de ter deixado de fora a música, é fácil perceber a influência de artistas que vão de Pearl Jam a Nirvana, passando por Creedence Clearwater Revival, quando folheamos cautelosamente – e essa é uma palavra que precisa ser administrada com cuidado durante toda a leitura – página a página desse espetáculo visual.

Seus traços brutos (tanto quanto os músculos de um dos caminhoneiros envolvidos na trama) que nem por isso perdem o rigor e a excelência quando unidos, compõem um conjunto muito bem tecido de cores e linguagem, deixando o leitor sem ar e, ao final da história, desejando mais e mais.

Grampá segue uma linha que tem se tornado referência no quadrinho nacional, principalmente depois da ascensão internacional de nomes como Gabriel Bá e Fábio Moon, que vêm arrebatando prêmios de renome no exterior. E esse estilo tem uma explicação muito fácil de ser definida pelos leitores: eles não tem vergonha de arriscar. Digo isso porque percebia nos quadrinhos brasileiros durante um tempo uma vontade incômoda de parecer tradicionais em excesso (salvo, é claro, exceções lendárias como Henfil, Angeli e outras feras de longa data).

Já nessa nova geração de autores, ao contrário, não há limites no que concerne a responder a pergunta: “O que esperar quando se lê um trabalho desses jovens inquietos?”. E esse é exatamente o grande mérito dessa obra gráfica. É inventiva e faz com que o leitor queira sempre um pouco mais no quadrinho seguinte.

Terminada essa experiência – pois trata-se de mais do que uma simples leitura -, chego a conclusão, como chegarão aqueles que ousarem enfrentar esse desafiador trabalho, de que mais do que mostrar um universo até então desconhecido para os leitores tupiniquins, Mesmo Delivery reinventa a arte gráfica nacional num patamar nunca antes visto na história da nona arte (pelo menos, a parte da história que nos interessa).

Procurem outros trabalhos de Rafael. O cara manja! Por quê? Diálogos fortes, duros, sem pudor, batalhas sangrentas por motivos torpes ou medíocres, frases de duplo sentido, rixas, apostas e um sentimento misto de niilismo e redenção bem ao gosto do autor que vem se transformando num interessante legado do nosso mercado quadrinístico nos últimos anos. E isso por si só já vale uma bela conferida em seu trabalho. E quem quiser saber mais do que isso, aí só lendo…

Fonte: https://robertoqueiroz1976.blogspot.com/2021/04/uma-pulp-fiction-tupiniquim.html

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