Ualalapi, o livro de estréia de Ungulani, nos transporta para o passado histórico de Moçambique, onde acompanhamos a derrocada do último grande império nativo do sul do país, o reino de Manjakaze, governado por Ngungunhane e derrotado em 1896 por Mouzinho de Albuquerque, governador militar de portugal em Moçambique. O autor nos guia na imersão em um mundo mágico, tipicamente africano, e ao longo da viagem vamos acompanhando as glórias e as desgraças dos personagens que vivem os momentos de agonia e morte do que outrora fora um poderoso império. É uma obra de ficção histórica e na abertura dos capítulos, o escritor apresenta-nos os fragmentos que se seguem, fragmentas esses baseados em pesquisa histórica – os fragmentos do fim, pois, em toda a obra se anuncia o fim próximo do Império, como veremos no Último discurso de Ngungunhana. Boa viagem. (Beto)
de Ualalapi
INLD, 1981
Nada no mundo pode dar uma pálida ideia da magnificiência do hino, da harmonia do canto, cujas notas graves e profundas vibradas com entusiasmo por 6000 bocas faziam-nos estemecer até ao íntimo.Que majestade, que energia naquela música, ora arrastada e lenta, quase moribunda, para ressurgir triunfante num frémito de ardor, numa explosão queimante de entusiasmo! E à medida que as mangas se iam afastando, as notas graves iam dominando, ainda por largo espaço, reboando pelas encostas e entre as matas de Manjacase. Quem seria o compositor anónimo daquela maravilha? Que alma não teria quem soube meter em três ou quatro compassos, a guerra africana, com toda a acre rudeza de sua poesia? Ainda hoje nos “cortados ouvidos me ribomba” o eco do terrível canto de guerra vátua, que tantas vezes o esculca chope ouviu transido de terror, perdido por entre as brenhas destes matos….
Ayres d’Ornellas, in “Cartas de África”
Sentindo que pisava um objeto estranho e duro o cavalo levantou as patas dianteiras, relinchou, e voltou a poisá-las sobre o corpo, precisamente sobre o ventre leve e macio do negro. O negro gritou, enterrou os dedos na areia húmida, abriu desmesuradamente os olhos, saltou-lhe um jacto de sangue pela boca e viu a tripas a sairem, perfuradas por balas.
O coronel galhardo olhou para o negro, viu as tripas a escorrerem pela terra, viu os liqüidos intestinais a desaparecerem por entre o capim amassado, viu o sangue a escorrer pelo corpo,e não se comoveu.Olhou de novo para o rosto do negro, e notou que o homem tentava soerguer a cabeça. Do pescoço os nervos despontavam, tensos.
“”Onde está o rei?”perguntou –
O negro voltou a abrir desmesuradamente os olhos, tentou enterrar com mais força os dedos, ergueu lentamente a cabeça, expeliu um novo jacto de sangue pela boca e voltou a tombar a cabeça definitivamente sobre a terra. O coronel olhou para o sangue que escorria nas patas dianteiras do cavalo, olhou para o rosto desfigurado pela morte e comentou com um leve sorriso entre os lábios:”Estes pretos têm uma força de cavalo!…”
Puxou as rédeas do cavalo, virou-o à esquerda, e contemplou com certo cansaço o mar de mortos sem sepultura que a planície ostentava. Ao longe, silenciosa, erguia-se a capital do império de Gaza.As casas, pardas, adormeciam na noite que fugia.
“Queimem a povoação!” sentenciou o coronel e esporeou o cavalo em direção ao outeiro mais próximo.
“Estão cumpridas as ordens de V.Exa. A coluna do meu comando efetuou a marcha sobre Manjacase. Chegado a langua, provoquei o inimigo em combate, bombardeando a povoação.Gente do Ngungunhane apareceu no bosque que circunda e oculta o Kraal, em pequenos grupos, respondendo apenas com algums tiros de espingarda ao fogo de artilharia da coluna, que os dispersou rapidamente.
“Em seguida, deixando o comboio devidamente escoltado, marchei sobre o Manjacaze, que encontrei abandonado, mas com muitas munições e obbjetos de uso dos habitantes, tudo na desordem própria de uma precipitada fuga.Os auxiliares saquearam a povoação e o chigocho do régulo, que logo depois mandei incendiar, ficando tudo completamente destruído, e voltando com a coluna ao bivaque na langua”
Assim começa o relatório à posteridade do coronel Galhardo. Um relatório pormenorizado, prolixo, mas falho em aspectos importantes que o coronel omitiu, ao não registrar:
- O fato de ter profanado como um ímpio o llhambelo, urinando com algum esforço sobre o estrado onde Ngungunhane se dirigia na época dos rituais e muito menos os escarros que atirou à parede de troncos, misturados com o tabaco do charuto que ostentava entre os lábios queimados.
- O roubo de cinco peles de leão que ostentou na metrópole, como resultado de uma caçada perigosa em terras africanas.
- O fato de ter, pessoalmente esventrado cinco negros com o intuito de se certificar da dimensão do coração dos prestos.
- O fato de se ter mantido sóbrio e sereno face às labaredas que comiam as palhotas da capitald o império e ao choro da criança em chamas que gatinhava desesperada, por entre as chamas e os troncos queimados e o capim e o adoe que desabava, procurando a vida na estupidez da guerra.
A propósito deste homem o então comissário régio de Moçambique (1895) António Enes, escreveu, anos mais tarde, nas suas memórias, o seguinte: “se na galeria dos homems ilustres estiver inscrita a bravura, a tenacidade, o respeito pelo homem, a bondade, o amor à patria, o coronel Galhardo tem assento por mérito próprio.”
Vendo logo que os pretos fugiram, sahir d’uma palhota próxima um homem de corôa, perguntei-lhe pelo Gungunhana e elle apontou-me para a mesma palhota d’onde sahira.Chamei-o muito d’alto do meio d’um silêncio absoluto, preparando-me para lançar fogo à palhota, caso elle se demorasse, quando ví sahir de lá o régulo Vatua que os tenentes Miranda e Couto reconheceram logo por o terem visto mais de uma vez em Manjacase. Não se póde fazer idéia da arrogância com que resondeu à:s primeiras perguntas que lhe fiz. Mandei-lhe prender as mãos atraz das costas por um dos dois soldados pretos e disse-lhe que se sentasse.Perguntou-me onde, e como eu lhe apontasse para o chão, respondeu-me muito altivo que estava sujo. Obriguei-o entã à força a sentar-se no chão (cousa que elle nunca fazia), dizendo-lhe que ele já não era régulo dos Mangonis mas um matonga como qualquer outro. Perguntei ao regulo por Quêto, Manhune, Molungo e Maguiguana. Mostrou-me Quêto e o Manhune que estavam ao pé d’elle e disse que os outros dois não estavam. Exprobei ao Manhune (que era a alma damnada do Gungunhana) o ter sido sempre inimigo dos portugueses, ao que elle só respondeu que sabia que devia morrer. Mandei-o entã amarrar a uma estaca da palissada e foi fuzilado por três brancos.Não é possível morrer com mais sangue frio, altivez e verdadeira heroicidade; apenas disse sorrindo que era melhor desamarral-o para poder cahir quando lhe dessem os tiros. Depois foi Quêto. Elle fora o único irmão de Muzzilla que quizera a guerra contra nós e o único que fora ao combate de “Coollela”. Não tinha vindo pegar pé, como tinham feito Inguiusa e Cuiu seus irmãos. Dizendo-lhe eu isto, respondeu que não podia abandonar o Gungunhana a quem tinha creado com se fora pae, retorquindo-lhe eu: que a quem desobedecia e fazia guerra ao Rei de Portugal, deviam pae, mãe e irmãos abandonal-o. Mandei-o amarrar também e fuzilar.
Extractos do relatório apresentado ao Conselheiro Correia E Lança, governador interino da Província de Moçambique, pelo governador militar de Gaza, Joaquim Mouzinho D’Albuquerque-1896
Felicito em nome do governo português V. Exa. pelo brilhante feito de armas que acaba de practicar e recebo das suas mãos o ex-régulo da Gaza, Mundungaz, vulgo o Gungunhana, Godide e Molungo, filho e tio do mesmo Gungunhana, assim como as mulheres deste, Namatuco, Fussi, Patihina, Muzamussi, Maxaxa, Hesipe e Dabondi, o ex-régulo de Zichacha, Matibejana, e mulheres d’este Pambane, Oxóca, e Debeza, traidores à Pátria que ousaram contra ela levantar armas.O Snr. Governador do distrito queria mandar lavrar o auto d’esta entrega e outro de reconhecimento de identidade dos referidos prisioneiros.
Palavras do Sr. Conselheiro Correia, governador interino de Moçambique, ao receber das mãos de Mouzinho D’ Albuquerque, governador militar de Gaza, os prisioneiros de guerra-06 de janeiro de 1896
A mingi bonanga e mizenu yanu
ngi ya hamba, manje mizokusebendza
ni bafazi benu…
Jamais me vistes em vossas casas…
É verdade que me vou, mas sereis escravizados
com as vossas mulheres
Palavras últimas de Ngungunhane antes do embarque