Ngunguhane foi o último soberano do sul de Moçambique, antes da conquista definitiva da região pelos portugueses. Ele foi derrotado e preso em 1896 e levado a Portugal, onde veio a falecer. Este conto de Ungulani é particularmente emblemático, pelo fato de que, através da voz do soberano, o autor fez uma crítica aguda do sistema político Moçambicano pôs independência, pautado pela repressão política, carência e guerra civil. Em suma, tudo o que “o rei profetizou”, se concretizou.
Virou-se repentinamente para a multidão que o vaiava, a uns metros do paquete que o levaria ao exílio, e gritou como nunca, silenciando as aves e o vento galerno, petrificando os homens e as mulheres com as palavras que saíam em catadupa e que percorreram, eni outras bocas, gerações e gerações em noites de vigilia e insónias, dada a forja premonitiva que carregavam nessa manhá sem outro registo que o mar sem ondas, o paquete atracado, o Sol com a mesma cor, as nuvens de todos os tempos, a multidão concentrada, Ngungunhane falando, e o corpo bojudo oscilando para a direita e para a esquerda, enquanto os olhos reluziam e as mãos tremiam ao ritmo das palavras que cresciam, de minuto a minuto, como agora em que Ngungunhane dizia a todos, podeis rir, homens, podeis aviltar-me, mas ficai sabendo que a noite voltará a cair nesta terra amaldiçoada que só teve momentos felizes com a chegada dos nguni que vos tiraram dos abismos infindáveis da cegueira e da devassidão. Fomos nós, homens, que vos tirámos da noite que vos tolhia á entrada ao mundo da luz e da felicidade. As nossas lanjas tiraram as cataratas fossilizadas que ostentavam, e os nossos escudos esconjuraram os males de séculos e séculos que carregavam no corpo putrefacto. E hoje, corja de assassinos e cobardes, ousais achincalhar-me com toda a força dos pulmões rotos que tendes.É a paga, eu sei, dos bens que os nguni fizeram. Mas ficai sabendo, seus cães, que o vento trará das profundezas dos séculos o odor dos vossos crimes e viverão a vossa curta vida tentando afastar as imagens infaustas dos males dos vossos pais, avós, pais dos vossos avós e outra gente da vossa estirpe. Começareis a odiar os vossos vizinhos, increpando-os dos males que padecerão nas palhotas sem idade. O ódio alastrar-se-á de familia em família, atingindo os animais da vossa estima que passarão a lutar pelos pastos, se de gado bovino ou caprino se tratar. Os galos não se meterão com as galinhas da vizinha e os ratos dividir-se-ão por casas e roerão os bens de uma só família ao longo de gerações e gerações. E aí, seus cães, não terão coragem de erguer a cabeça. A corcova será de tal ordem que tereis filhos e netos com uma bossa interminável e hereditária!
– Há pormenores que o tempo vai esboroando disse o velho, tossindo. Colocou duas achas no fogo e soprou. Novelos de fumo passaram pelo rosto. Pequenas lágrimas sairam dos olhos cansados e tocaram na pele coberta de escamas. Afastei os papéis. Olhei-0. Era noite.
– Era miúdo ainda – prosseguiu – quando o meu avó me contava histórias de Ngungunhane. E eu tinha medo. Um medo que hoje não consigo explicar. Mas era medo. Quando dormia sonhava sempre com lanjas e escudos a chocarem-se na planície, numa planície sem guerreiros, mas com escudos e lanjas que se movirnentavam, chocando-se constantemente. Nunca contei ao meu avô os meus sonhos. Receava que ele parasse de contar as histórias de Ngungunhane. E quando contava a voz tremia e os gestos seguiam o ritmo da voz. Morreu a dormir, sonhando alto. De manhã, ao entrar na sua cubata, vi-o deitado ao comprido, olhando o tecto. Falava. A voz tocava-me profundamente. Durante horas seguidas ouvi-o falar. Quis acordá-lo, pois já era tarde. Ao tocá-lo notei que o corpo estava frio. Há muito que tinha morrido. Tiveram que o enterrar imediatamente para que os vizinhos não nos chamassem feiticeiros. E o nosso espanto foi ouvir a voz saindo da cova, uma voz como que vinda de escarpas abissais. O meu pai teve que sentar-se sobre a sepultura e acompanhar, movimentando a boca, a voz do defunto. Os vizinhos e outros familiares distantes sentiram pena do meu pai, pois pensaram que estivesse louco. Noite e dia, durante uma semana e meia, o meu pai abria e fechava a boca.
– Como é que se chamava?
– O meu avó?
– Sim.
– Somapunga. E ele, ao contar-me as histórias de Ngungunhane, repisava alguns aspectos que o meu pai se esquecia e que tu omitiste. E são pormenores importantes.
– Não me recordo de ter omitido nada.
– Quando Ngungunhane falava á multidão que o vaiava, uma mulher, sem aparéncias de gravidez, teve uma criança sem olhos e sexo. Dois homens tiveram um colapso cardíaco.
– E ninguém reparou?
– Petrificados que estavam com as palavras de Ngungunhane, creio terem sido poticos os que viram.
– A mulher não gritou?
– Não. Deve ter aberto os olhos e a boca antes de desmaiar. Quando deram por ela já estava morta. E o que impressionou as pessoas foi o sangue escorrendo em direcgáo á fortaleza. O sangue era negro como a nossa pele. E á medida que avançava abria um pequeno sulco pela encosta acima. Os portugueses cobriram com saibro.
– Interessante.
– É, é interessante – disse o velho, soprando o fogo. Pequenas faúlhas saltaram e desapareceram na noite.
Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão. Os nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que impôs a ordem nestas terras sem ordem, a palavra que tirou crianças dos ventres das vossas mães e mulheres.O papel com rabiscos norteará a vossa vida e a vossa morte, filhos das trevas.
As mulheres, que tanto estimais, passarão a ser fornicadas como animais nas vossas casas ou nas traseiras das casas destes animais que hoje respeitas mais que os vossos irmãos nguni. Os gritos de dor e de prazer das mulheres perseguir-vos-ão por todo o lado e passareis noites e noites contando os paus do tecto, incapazes de se vingarem da infâmia que tocou as mulheres. Muitos de entre vocês suicidar-se-ão em árvores anãs ou entregar-se-ão aos crocodilos que vos rejeitarão pela cobardia que transportam, e flutuarão pelas águas durante anos e anos sem que um animal aquático se aproxime da carne putrefacta. Outros suportando a dor e a ignomínia e passarão a acompanhar a mulher á casa do branco, mantendo-se na escuridão do pátio, enquanto a mulher transpõe a porta e entra no quarto donde sairá com insultos do branco que a obriga a tomar banho antes de entrar nos lenções cheios de esperma e larna, como se ela não tivesse tomado banho de manhã e á tarde, no rio oui em casa. O marido suportará estes insultos ouvindo a água a escorrer pela cútis negra e limpa enquanto aguarda, com um olhar de cadáver, o estertor maníaco do branco e o ofegar da mulher que se contorcerá na cama, libertando sons do fim dos tempos que rebentarão com os tímpanos e as veias donde escorrerá o sangue e as lágrimas da vergonha que atingirão o ponto culminante ás altas horas da noite, quando o branco, do parapeito da janela, atirar a moeda da fome que procurará como um sonâmbulo na noite sem estrelas. Seguirá para casa silencioso, incapaz de falar com a mulher que vai tropegando nos escolhos, envergonhada, aviltada.
E por todo o lado, como uma doença que a todos ataca, começarão a nascer crianças com a pele da cor do mijo que expelis com agrado nas manhãs. Serão crianças da infâmia. E pela primeira vez na vossa vida vereis filhos rejeitando as mães que se atirarão às casas onde o corpo se venderá ao preço do pão, fornicando com as crias que desconhecem e apontando ao acaso os presurniveis pais da caterva de miúdos que nascem ás dezenas. As doenças nunca vistas tocar-vos-ão a todos, e não darão ouvidos ao curandeiro porque haverá casas onde espetarão ferros pelo corpo; e haverá homens com vestes de mulher que percorrerão campos e aldeias, obrigando-vos a confessar males cometidos e não cometidos, convencendo-vos de que os espíritos nada fazem, pois tudo o que existe na terra e nos céus está sob o comando do ser que ninguém conhece mas que acompanha os vossos passos e as vossas palavras e os vossos actos. A noite terá caído definitivamente nestas terras que mudarão de face com o vosso suor.
vossa existência por pouico tempo, pois começarão a odiar-se e a matarem-se por pensarem no trono antes de o conquistarem. Haverá sangue a correr, chamar-se-ão nomes que a vossa língua não comporta e voltarão a procurar os curandeiros da vossa salvaguarda que passarão a cobrar pela mesma moeda que o cantineiro vos cobra pelo arroz. Matarão á distáncia o vosso opositor, fazendo-o emergir na bacia de morte onde a água tomará a cor do sangue. Lançarão abelhas mortíferas aos vossos animigos e haverá cacimbo ao meio-dia. Mas começarão a aprender novas doutrinas que rejeitarão os espíritos, os feiticeiros e curandeiros. Todos ou quase todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro muitos irão ao curandeiro e pedirão a raiz contra as balas do inimigo, porque não quererão morrer antes de saborearem a vitória, e o curandeiro pedirá o coração do inimigo que abaterão sem piedade na emboscada dos troncos que se movem. Em todo o lado sentir-se-ão heróis, pois a bala passará á distáncia e se vos tocar bastará um encosto á árvore que secará e que vos restituirá a saúde. Outros transforinar-se-ão em serpentes, entrarão no campo inimigo, estudarão os seus passos e verão o quantitativo. E esta será a nossa guerra vitoriosa contra os homens que entraram nestas terras sem autorização de ninguém. Muitos dos filhos destes homens ficarão nestas terras e aprenderão as nossas línguas e dançarão as nossas danças e casarão com as nossas mulheres á vista de toda a gente e serão nossos irmãos de verdade porque esconjurarão com os curandeiros do amanhã os seus males de séculos.
Chegada a vitória tereis um preto no trono destas terras. Exultareis de alegria ao verem subir panos na noite chuvosa da vossa vitória. Mas não tereis chegado ainda ao tempo da vossa felicidade, seus cães, por que a maldição que abraçou estas terras, perdurará por séculos e séculos. E na ilusão da vossa vitória invadiráo casas que erguestes e mudarão a ordem das coisas, passando a cagar onde deviam comer e a comer onde deviam cagar. A desordem será de tal ordem que as casas mudarão de cor, passando a ter a cor da morte que se instalará nas vossas terras que terão a extensão de meses e meses de percurso. Haverá chuvas de nunca acabar que arrasarão os campos e as cidades. As estradas rebentarão e começarão a surgir pelas avenidas e ruas, serpentes comi ninhos á vista de toda a gente e confundirão os seus silvos com. os apitos desordenados de polícias em jejum de séculos á caga de ladrões profissionais que roubam cigarros e pilhas e batatas e restos de comida. Os carros de bois passarão a. substituir as máquinas que deitam fumo e verão as ruas repletas de bostas secas e frescas que os homens recolherão nas noites infindáveis da fome. Ávidos em se alimentarem farão papas de merda que provocarão diarreia e vómitos que encherão as casas de cimento, saindo depois pelos corredores e escadas sem degraus até aos jardins e ruas, provocando o dilúvio de diarreias e vómitos que afogará crianças e velhos, homens e mulheres, que serão o alimento de ratos gigantes que terão a liberdade das avenidas e casas sem dono. Serão os primeiros dias da vossa desgraga que se completarão com os homens que percorrerão as matas, matando os pais e a máes, ávidos do tempo do chicote e das plantações de sonâmbulos. A confusão reinará por séculos e haverá suplícios ao fogo; rebentarão as barrigas grávidas de mulheres inocentes, obrigando os pais a comer os nados-mortos sem uma lágrima nos olhos. O sol mudará de cor e as nuvens afastar-se-ão do céu por tempos imprecisos, trazendo a chuva quando menos esperam e o sol quando se espera a chuva. E a fome chegará á loja onde os cantineiros passarão a vida a espantar as moscas, enquanto o povo inteiro transforma as ruas em cantinas. As cadeias multiplicar-se-ão e os homens do mando chegarão ao ponto de prender a todos porque todos venderão e comprarão coisas ao preço que ninguém sabe. E as ruas estarão desertas. E haverá chefes sem súbditos. E terão que voltar ao princípio dos princípios. Eis o que é e o que será a vossa desgraça de séculos homens. Agora riam-se á vontade, riam-se, homens!…
– E olhou-os – disse o velho -, estava cansado. Transpirava por todo o corpo e o peito estava cheio de baba. A multidão olhava-o petrificada. As nuvens tinham desaparecido. As ondas começaram a surgir nas aguas e o paquete começou a roncar. O Sol estava a meio do céu. As mulheres começaram a chorar. Os homens, incrédulos ainda, olhavam Ngungunhane que limpava calmamente a baba. Deu dois passos em frente e parou. Numa voz arrastada, calma, cansada, disse: – A chuva não virá a estas terras antes de se completarem dois anos. Irão pelo mato fora e comerão ratos que desaparecerão na primeira noite. Depois procurarão gafanhotos que não encontrarão.Entrarão nas aguas e comerão os peixes, contrariando o juramento que fizestes ao longo da nossa estada nestas terras. Os nguni que restarem voltaráo á Zululândia, porque não suportarão a vossa cobardia, tsongas sem espírito!
Ditas estas palavras finais Ngungunhane virou-se e caminhoui em direção ao navio, acompanhado pelas mulheres e o filho e outros homens. Subiu as escadas sem voltar uma única vez o rosto. Desapareceu no interior do navio. Durante uma hora, aproximadamente, ficaram á espera que o navio arrancasse. Os motores trabalhavam. As águas em volta estavam revoltas. 0 navio não arrancava. Passada a hora ouviu-se um canto a elevar-se pelos ares e os pássaros a invadir o céu. Ngungunhane cantava e dançava. A voz, em barítono, tirou lágrimas aos velhos e novos que olhavam. o navio a abrir as águas afastando-se da costa. Depois do barco se perder no mar ouviu-se ainda o canto a cobrir o céu e a terra. Ngungunhane desapareceu.
Levou duas achas ao fogo e soprou.
– A seca invadiu estas terras – continuou. A colheita foi má. Maguiguane quis aproveitar-se do descontentamento para a revolta mas os portugueses tinham mais forças. 0 império desabou para todo o sempre. Já tinha desabado com a partida de Ngungunhane.
– É isso – redarguiu o velho. – Já tinha desabado. Os portugueses venceram.
– Mas perderam num campo mais vasto.
– Ngungunhane tinha predito.
– Tem razão. Não vai dormir?
– Vou dormir aqui, junto ao fogo.
Levantei-me. Estava cansado. A noite clara, sem nuvens, dava total liberdade á Lua. Comecei a afastar-me da fogueira. Com a cabeça apoiada entre as mãos o velho soluçava. Comecei a andar depressa. Não sei porque mas á medida que ouvia o choro do velho apressava o passo. Afastei-me da cabana que me estava reservada e virei o rosto em direcão á fogueira. Entre duas mangueiras enormes, o velho, com a cabeça entre as mãos, não via o fogo e a noite. Chorava. E eu afastava-me da cubata, do meu quarto, e atirava-me á noite de luar. Algo me intrigava no velho e no discurso de Ngungunhane.
de Ualalapi
INLD, 1981