quem fala que sou esquisito hermético
é porque não dou sopa estou sempre elétrico
Waly Salomão
Inevitável, para se falar de Waly Salomão, começar se falando dele, da sua figura, no mínimo, única. Impossível ficar impassível diante da sua fala, da sua retórica, da sua mise-en-scène, e, por isso, faço minhas as palavras de Antônio Risério: “Waly é um farsante declarado e colorido num ambiente cultural infestado por beletristas seriosos e cinzentos. (…) uma verdadeira montanha-russa de grossura e finesse”. Voilà! Filho direto do tropicalismo, Waly é uma das caras-metade dos nossos anos 70’s tupiniquins. Enquanto um lado da nossa juventude fugia para o exterior, salvando a própria pele do terror de Médici e seus asseclas, o outro lado aderia ao desbunde (forma que a contracultura assumiu nos, então, tristes e brutais trópicos). Waly é um dos ícones dessa contracultura tropical e, enquanto baiano, é descendente legítimo da verve ácida de Gregório de Matos com o emaranhado retórico do Padre Antônio Vieira. Dono de 1.001 máscaras, Waly é doublé de letrista, produtor musical e cultural, ambientalista, organizador de coletâneas, agitador cultural, propagandista, publicitário, guerrilheiro, etc. etc. etc. Enfim, homem político. Mas se engana quem vê na opção pelo desbunde uma simples alienação naqueles turbulentos anos. Em livro chamado Impressões de Viagem: CPC, vanguardas e desbunde-1960/70, Heloísa Buarque de Hollanda observou quanto a atitude intempestiva e marginal nos anos 70’s funcionava como transgressão e oposição às normas, sociais e políticas, então vigentes naquela sociedade. Para isso ela tomou os textos de jovens poetas surgidos em peno rebuliço como aferidores dessa temperatura crítica. Waly fez parte desses jovens poetas com seu livro Me segura qu’eu vou dar um troço (1972). O livro é formado de delírios textuais programáticos, nos quais a descontinuidade narrativa é seu motor. Sua escritura tumultuária é sintomática do discurso da época, onde loucura e viagens, urbanidade e ecologia, paranóia e violência são o pano de fundo de uma experiência múltipla e contraditória. O sujeito acabara de perder seu eixo de referência e era obrigado – em alguns casos, optava – a viver circulando entre a marginalidade social e o descentramento subjetivo. Um texto de Me segura… chamado ‘Apontamentos do Pav Dois’ mostra um sujeito que, entre a barbárie no xadrez brasileiro e o horror nas ruas, sabe que não se tem duas opções: “o caderno de reserva se transforma no próprio texto”. Não há segunda chance, ou, como afirma ele em seu ‘Self-Portrait’: “Queimar etapas: criar coisas em que não me reconheça – não como traição a um sonho anterior, mas porque as coisas criadas são estranhas a todo sonho, anterior a todo passado”. Waly cria com a urgência de quem se sabe fadado por condição pessoal e cultural a ser nativo e estrangeiro, viver nas bordas, transbordando sempre. Depois da aventurosa ventura dos 70’s, Waly recolhe as armas por 11 anos e retorna só em 1983 com seu Gigolô de bibelôs. Nesse livro ele reedita Me segura… e a ele ajunta letras musicadas e textos mais experimentais e menos delirantes. De qualquer maneira, é o mesmo Waly, pois a experiência caótica continua seu leitmotiv textual, por mais que agora venha sob a forma de colagens, caligramas, desenhos, pastiches experimentais, testes sonoros e visuais. Da sua experiência com as letras, surgiu no longo período entre o primeiro e o segundo livro, e mesmo após este, uma série de livros dentre cujos organizadores figurava à proa Waly, múltiplo. Ainda nos anos 70’s ele prepara e edita o livro Alegria Alegria, de Caetano Veloso, onde constam textos do próprio Caetano – uma espécie de escritos de juventude do músico e cantor. Já nos 80’s, Waly prepara coletâneas póstumas de amigos: Os últimos dias de Paupéria, textos da Geléia Geral de Torquato Neto, e Aspiro ao grande labirinto, artigos e escritos vários de Hélio Oiticica, de quem lançou também uma biografia nos anos 90’s. Dois grandes companheiros de geração prematuramente mortos, de quem Waly tomou para si a guarda da memória artística. Mas estávamos até há pouco dos estertores dos anos 90’s falando sobre os estertores dos anos 60’s, que se acabaram, aqui no Brasil, lá pelos inícios dos 80’s com as eleições diretas. Vamos dar um novo salto e chegarmos à retomada de Waly daquilo que ele se considera primordialmente: o ser-poeta. Em 1996, para surpresa dos que nunca levaram a sério em sua figura instável a aura de poeta, Waly nos brinda com um grande livro: Algaravias: câmara de ecos. Nesse livro ele parece por ordem ao caos anterior, não simplesmente pondo fim a seu derramamento textual, mas exatamente ordenando-o, dispondo-o de maneira precisa e eficaz. Permanece, no entanto, o desdobramento hiperbólico do seu ímpeto barroco. Mesmo tendo ganho dois importantes prêmios nacionais com esse livro (Jabuti e Alphonsus de Guimaraens), e por isso mesmo, penso ser importante lembrar que as características que tão bem marcam o mais recente Waly estão presentes desde Me segura… Seu tão propalado barroquismo já aparecia nas enumerações caóticas, beirando o surreal, na hipérbole e no jogo de palavras, na farsa narrativa, que produz o mundo como grande encenação de si mesmo (cf. Calderón de la Barca), as raízes árabes de mercador, o que nos leva também à Ibéria e sua influência moura, e a quebra de fronteiras entre o coloquial e o erudito, entre o popularesco e o cultivado. Isso tudo está tanto no primeiro como na mais recente produção de Sailormoon. Mas há particularidades a serem marcadas nessa produção. Em Algaravias, o que me parece ser o mote e motor dos poemas é a viagem. O sangue sírio de Waly o leva, como mercador, a migrar. Viagens imaginárias por diferentes dimensões, por poetas de diferentes épocas, por diferentes idades, pelas diferentes pessoas e mundos que o habitam. O poema que referencia essa temática é o “Poema jet-lagged”, que começa receoso: “Viajar, para que e para onde, / se a gente se torna mais infeliz / quando retorna?” e termina aventureiro: “Mas ficar, para que e para onde, / se não há remédio, xarope ou elixir, / se o pé não encontra chão onde pousar, /…/ se viajar é a única forma de ser feliz e pleno?”. Entre ir e ficar, Waly, coerentemente, opta pelo ir. Waly caminha por poéticas várias nesse seu livro, mas, como insinua o prefaciador, o baianárabe posta-se exatamente no limiar entre uma visão de mundo romântica e anti-romântica, chagando a compor um poema de título “A persistência do eu romântico”, em que no seu final escreve: “O real chapa. / A imaginação voa”. O livro posterior, Lábia (1998), me parece como a rebordosa do anterior, sobras de viagem. Mesmo assim, com momentos únicos, como os ready-mades lingüísticos, tão ao seu gosto: “acabou-se o que era doce, o confete foi-se, / está findo o efeito placebo. / queimado o filme e desmoronada a encosta / e esgotada a pilha da prosopopéia” ou sua “resposta” ao prefaciador de Algaravias, Eduardo Medina Rodrigues, “a primeira pessoa busca a divina perdição para si. / Eu, por exemplo, inteiramente perdido, / passei a confiar só em mim / e sou a pessoa menos digna de fidúcia / porque não sou uno, monolítico, inteiriço”. Há em Lábia uma diminuição das viagens e um aumento da reflexão, se bem que nunca em Waly a reflexão exime o mundo; ao contrário, ele reflete falando do mundo. Por fim, seu mais recente livro, Tarifa de embarque (2000), cujo título explicita a temática em que o autor vinha reincidindo – a viagem – e aprofunda poeticamente os dois anteriores, disparando em muitas direções. Menos condensado e mais disperso, Tarifa… reelabora várias referências, vivências e leituras. Dentre as vivências encontra-se o sertão, onde nasceu, e o mundo árabe, onde possui lastros culturais fortes; dentre as leituras, a reafirmação da marginalidade com o polêmico “Novelha cozinha poética”, onde desanca a crítica universitária, sugerindo que ela se apropria de autores como o nazismo matava pessoas. A polêmica está em ele exemplificar isso usando autores que viveram a experiência do holocausto judeu. Reproduzo todo o poema: Pegue uma fatia de Theodor Adorno Adicione uma posta de Paul Celan Limpe antes os laivos de forno crematório Até torná-la magra-enigmática Cozinhe em banho-maria Fogo bem baixo E depois leve ao Departamento de Letras Para o douto Professor dourar. Isso vindo de um autor com raízes árabes me parece soar como provocação. Waly já é reconhecidamente um provocador, o que só reforça o sentido. O território onde palavra e ética se cruzam tem sido muito debatido ultimamente, e penso que esse poema só vem colocar mais lenha na fogueira. Como nunca teve medo da contradição, Waly reafirma sua acidez sendo avalizado exatamente pelo que há de mais canônico em matéria de crítica no Brasil: a USP. Seus 3 últimos livros possuem ‘orelhas’ escritas por eminentes professores da instituição: Davi Arrigucci, José Miguel Wisnik e Walnice Nogueira Galvão tecem loas a Sailormoon. Certo e errado, rebarbativo e condensado, baixo e elevado, pop e erudito, Waly, para além de todos e, principalmente, de si mesmo, vai escrevendo seus poemas como quem vive na própria pele sensações de grande intensidade. Antes de tudo, um poeta da mais intransigente contemporaneidade, essa que nos surpreende e nos entedia, nos retrai e nos impele para frente a cada instante. Como nos bons programas vanguardistas do começo do século, para Waly, poesia é vida.