Durante 500 anos, a história do Brasil foi pautada, recortada, contada e largamente difundida segundo, e exclusivamente, a versão do colonizador, não só porque detinham o controle político-mercantil, mas também porque fizeram uso da língua dominante a fim de impor o padrão escolástico da corte real, também dote sagrado da língua reconhecida pela igreja católica.
Sob a égide do Concílio de Trento – os jesuítas preocupados com a dilatação da fé – defrontaram-se com realidades culturais totalmente estranhas e movidos pelo etnocentrismo, condicionavam as línguas indígenas ao único padrão referencial por eles conhecido e que gozava do prestígio de certa sacralidade por ser a língua oficial da igreja. Tudo em nome da preservação dos costumes católicos tradicionais e os princípios da moralidade cristã.
Para justificar e apoiar tal visão européia etnocêntrica, partiam de pressupostos no mínimo preconceituosos e desde há muito contestáveis. Basta citarmos um trecho do brasilianista Charles Boxer, ao estudar o governo de Salvador de Sá:
Os índios nômades da floresta brasileira não estavam preparados nem mentalmente, nem pelo estado de cultura para suportar uma vida de labuta diária, ao simples aceno ou chamado de outrem. (Charles Boxer, 1973: p.137)
O primeiro testemunho lingüístico deste novo protagonista da empresa mercantil recém-chegada de além-mar – o colonizador – foi-nos oferecido pela Carta de Caminha. Aqui é o invasor quem nos fala de seus feitos, façanhas e empreitadas por meio de sua própria língua, e de acordo com seus costumes, bem como valores ideologicamente bem sedimentados, conforme rezava a cartilha do cristianismo, ratificada pelos interesses bárbaros dos tribunais do Santo Ofício e da Inquisição. Para entendermos como se processou a inculcação deste ponto de vista dominante e dominador, Marilena Chauí fornece uma pista esclarecedora:
o surgimento do cristianismo produz um efeito inesperado sobre a concepção da história […] introduz a idéia de que a história segue um plano e possui uma finalidade que não foram determinados apenas pela vontade dos homens. (Chauí, M. O mito fundador, 2000)
O fato é que a boa e santa vontade divina não resiste à confirmação de que havia desde o princípio – revestida sob a idéia de um paraíso terrestre a ser salvo e preservado pelos cristãos – a clara intenção de mercantilizar (explorar os bens materiais e riquezas da terra onde correm o leite e o mel abundantemente) e submeter os povos nativos, tornando-os agora cativos, fonte de lucro e satisfação das benesses do além-atlântico.
Se alguma geração há no mundo por quem Cristo Nosso Senhor isto diga, deve ser esta os índios, porque vemos que são cães em se comerem e se matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem. (Nóbrega, Diálogo sobre a conversão dos gentios)
Conforme o demonstra Chauí, o mito fundador é uma solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade e desta forma ilustra-nos a maneira e solução encontradas pelos invasores para caracterizar e estabelecer a identidade do povo brasileiro, até então aproximada do bom selvagem pois o primeiro elemento da construção mítica o lança e o conserva no reino da Natureza, deixando-o FORA do mundo da História.
Todo este modo de conceber e explicar a realidade brasílica, por meio de uma visão mítica do mundo e a partir de um viés exageradamente etnocêntrico, mostrou-se devastador, pernicioso e cruel aos habitantes ora de fato. Sem história, alijados da escrita e mantidos sob o controle lingüístico e cultural dos invasores, não podiam ser vistos como seres humanos, nem tão pouco providos de alma. Só lhes interessavam seus corpos sublimes e belos, prontos a saciarem os apetites libidinosos, pois segundo os mesmos conquistadores-degredados: viviam os nossos índios como vadios, inutilmente e sem prestança, sem produzir nada. Não lavram, nem criam.
Não tardou, é claro, a que se revelassem as suas mais íntimas intenções: os degredados que aqui chegaram, na verdade, estavam famintos de SEXO e sedentos de OURO, porque bem assim o desejavam:
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. (Carta de Caminha)
Quanto à impressão que lhes suscitaram as mulheres nativas, já deixavam entrever em doses psicanalítico-freudianas os seus mais secretos pudores e desejos enrustidos:
E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. (Idem)
(…)
Suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma (Idem)
Movidos pela paixão hormonal e a ambição desmesurada, sem limites, os degredados e desafortunados de além-mar NUNCA estiveram realmente interessados EM SALVAR ESTA GENTE. Trouxeram, isto sim, a bordo de suas naus e bagagens, e sob suas vestimentas infectas, uma das mais cruéis e devastadoras epidemias – a SíFiLiS – dizimando milhões de aborígenes. Tudo em nome do prazer, do preconceito e visão de mundo estigmatizada pelos valores divinamente consagrados. A população indene e debilitada não resistiu a este golpe da mal-fadada história dos invasores.
Passados cinco séculos, depois do colapso e o genocídio desta letal doença, a civilização ocidental ainda não aprendeu a conviver com o problema, e entre nós, impera livre e impunemente o preconceito, continuamos a discriminar negros, índios, homossexuais, pobres e excluídos – todos vítimas da desinformação e falta de acesso à educação com dignidade e cidadania. Os efeitos perversos da globalização já se fazem presentes e tendem a excluir ainda mais os já excluídos. É hora de pensar e agir. Não é prudente adiar sempre o problema, antes que seja tarde demais. Do contrário, não só depois do Carnaval, mas todo santo dia será Quarta-feira de Cinzas.