de Junky.
Editora Brasiliense, 1984.
Minha primeira experiência com junk foi durante a guerra, em 1944 ou 1945. Eu conhecia um sujeito chamado Norton que trabalhava num estaleiro, na época. Norton, cujo verdadeiro nome era Morelli, ou algo assim, tinha sido expulso do exército por forjar um cheque de pagamento, e recebera a classificação 4-F: mau-caratismo. Se parecia com o George Raft, só que mais alto. Tentando melhorar seu inglês, Norton arranjara uns modos delicados, afáveis. Essa afabilidade, porém, não ficava natural nele. Quando distraído, sua expressão era sombria e cruel; a gente sabia que, ao virar as costas, a crueldade estaria cintilando de novo naquele olhar.
Norton era um ladrão esforçado e não se sentia bem se não roubasse alguma coisa todos os dias no estaleiro onde trabalhava. Ferramentas, comida enlatada, um macacão, o que fosse. Um dia, ele me ligou pra dizer que tinha roubado uma metralhadora Thompson. Será que eu arrumaria um comprador? Eu disse: “Talvez. Traz pr’eu ver”.
A escassez de moradia ia se agravando. Eu pagava 15 dólares por semana por um apartamento sujo que se abria pruma escada interna e nunca pegava sol. O papel da parede estava descolando por causa do vazamento de vapor do radiador de
Ike me trazia cocaína, quando conseguia descolar alguma. C é difícil de encontrar no México. Eu nunca tinha experimentado uma boa coca antes. Coca é puro barato. Te deixa ligadão – uma ligação mecânica que começa a te abandonar, mal você começa a senti-la. Não conheço nada como C pra ligar uma pessoa, mas o barato não dura mais que uns dez minutos. Daí, você já quer outro pico. Nos períodos em que se está aplicando C, tende-se a aumentar a dose de M pra acelerar o pique do pó e também para arredondar suas arestas agudas. Sem M, C te deixa muito nervoso; M funciona de antídoto, em caso de overdose. Cocaína não desenvolve tolerância, mas a diferença entre uma dose normal e uma tóxica não é muito grande. Várias vezes eu errei na dose e comecei a ver tudo preto, o coração indo a pique. Por sorte eu tinha sempre muita morfina à mão, e um pico de M me reanimava rápido.
Junk é uma necessidade biológica, quando se está dependente. É uma boca invisível. Você se satisfaz com um pico de junk, como se batesse um belo prato de comida. Com C, porém, logo que o efeito do último pico se dissipa, você já quer outro. Tendo C em casa, você não sai mais pra ir ao cinema ou qualquer outra parte, até que tenha dado conta do pó. Um pico cria um desejo urgente pelo próximo, pra peteca não cair. Mas, no que a cocaína abandona o seu organismo, você esquece por completo dela. Cocaína não provoca dependência.
Junk dá curto-circuito no sexo. O impulso para a sociabilidade não-sexual tem a mesma origem do desejo sexual, por isso, quando estou fisgado pela heroína ou pela morfina, me torno não-sociável. Se alguém quiser conversar, OK. Mas não tomo a iniciativa de conhecer ninguém. Quando fora do junk, atravesso uns períodos de sociabilidade incontrolável e falo com qualquer um que se dispuser a escutar.
O junk te tira tudo e não te dá nada além de proteção contra fissura de junk. Vez por outra, eu fazia um balanço da vida que estava levando e resolvia me tratar. Com muito junk em cima, parece fácil cair fora. Você diz: “Isso não tá mais me dando nenhum barato. Acho que vou cair fora”. Basta entrar na fissura, porém, pras coisas ficarem diferentes.
Durante o ano, mais ou menos, em que eu vivi me picando no México, eu tentei cinco vezes a cura. Tentei reduzir os picos, tentei a cura chinesa, mas nada funcionou. Depois do meu fiasco chinês, resolvi fazer uns papelotes e dá-los à minha mulher, para que os escondesse e fosse me passando, de acordo com uma programação. Ike me ajudou a fazer os papéis, mas, como ele não tinha senso de medida, sua programação era muito generosa no início, e acabava de repente, sem redução real. Então, tracei eu mesmo minha programação. Cumpri as etapas, no começo, mas me faltava motivação. Descolava o bagulho por baixo do pano com Ike e sempre arranjava pretextos para um pico extra.
Eu sabia que não queria continuar no junk. Se fosse simples tomar essa decisão, eu nunca mais tocaria em junk. Mas, quando começava o processo de abandono, me faltava determinação. Sentia uma terrível sensação de desesperança ao me ver melar todas as tentativas, como se eu não tivesse mais controle sobre as minhas ações.