Arturo Bandini tinha toda a certeza de que nao iria para o inferno quando morresse. O caminho para o inferno era o cometimento de pecado mortal. Ele tinha cometido vários, supunha, mas o confessionário o havia salvado. Ele sempre ia para o confessionário a tempo, isto é, antes de morrer. E batia na madeira sempre que pensava nisso. Ele sempre iria chegar lá a tempo, antes que morresse. Por isso, Arturo tinha certeza de que não iria para o inferno quando morresse. Por duas razoes. O confessionário e o fato de que ele era um corredor rápido.
Mas o purgatório, aquele lugar a meio caminho entre o inferno e o paraíso, perturbava-o. Em termos explícitos, o catecismo declarava quais os requerimentos para o paraíso. Uma alma tinha que estar completamente limpa, sem a menor marca de pecado. Se a alma, na hora da morte, não estivesse limpa o suficiente para o paraíso e nem conspurcada demais para merecer o inferno, lá estava aquela região intermediaria, aquele purgatório onde “a alma queimava e queimava até que todas as suas máculas estivessem purgadas.”
Havia um consolo no purgatorio: cedo ou tarde se ficava garantido para o paraiso. Mas quando Arturo compreendeu que essa estada no purgatorio podia ser de setenta milhoes de trilhoes de bilhoes de anos, ardendo e ardendo, passou a restar pouco consolo na ida final para o parafso. Afinal, cem anos era um longo tempo. E cento e cinquenta milhoes de anos era incrivel.
Não: Arturo estava certo de que nunca iria direto para o paraíso. Por mais que temesse aquela perspectiva, ele sabia que estava destinado a passar uma longa temporada no purgatório. Mas não haveria alguma coisa que um homem pudesse fazer para diminuir o suplicio do purgatório? Em seu catecismo ele descobriu a resposta para o seu problema.
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A maneira de encurtar aquele período terrível no purgatório, o catecismo afirmava, era por meio das boas obras, da reza, pelo jejum, pela abstinência e acumulo de Indulgências. Boas obras estavam fora, até onde ele soubesse. Nunca tinha visitado um enfermo, porque não conhecia ninguém nessas condições. Nunca tinha vestido os desnudos, porque nunca tinha visto ninguém sem roupa. Nunca tinha enterrado um morto, porque havia os coveiros para isso. Ele nunca tinha dado esmolas para os pobres, porque não tinha nada para dar; além do mais, “esmolas” soava para ele como pães, e onde é que ele ia arranjar alguns pães? Ele nunca tinha abrigado* os feridos porque, bem, ele não sabia, parecia mais como algo que as pessoas faziam nas cidades costeiras, saindo para resgatar os marinheiros feridos nos naufrágios. Ele nunca tinha instruído os ignorantes, porque, afinal de contas, ele próprio era um ignorante, caso contrario não seria forçado a freqüentar aquela porcaria de escola. Nunca tinha iluminado a escuridão, porque aquele era um pensamento que nunca havia compreendido. Nunca tinha consolado os aflitos, porque parecia perigoso, e, de qualquer maneira, ele não conhecia nenhum. A maioria dos casos de sarampo e catapora tinha avisos de quarentena nas portas.
Quanto aos dez mandamentos, quebrara praticamente todos eles, e, no entanto, tinha certeza de que nem todas essas infrações consistiam em pecados mortais. Às vezes ele carregava um pé de coelho, o que era uma superstição e, portanto, um pecado contra o primeiro mandamento. Mas seria um pecado mortal? Aquilo sempre o perturbara. Um pecado mortal era uma ofensa seria. Às vezes, jogando beisebol, ele cruzava tacos com um companheiro do mesmo time: supunha-se que aquela fosse uma maneira certa de se acertar uma tacada para a segunda base. E ele sabia que se tratava de uma superstição. Mas seria um pecado? E seria um pecado mortal ou venial? Num certo domingo, ele havia deliberadamente perdido a missa para ouvir a transmissão do campeonato mundial de beisebol, particularmente para ouvir sobre o seu Deus, Jimmy Foxx, do Athletics. Caminhando para casa depois do jogo, ocorreu-lhe subitamente que tinha quebrado o primeiro mandamento: não cultuarás deuses estranhos antes de mim. Bem, tinha cometido um pecado mortal ao perder a missa, mas era outro pecado mortal preferir Jimmy Foxx ao Todo-Poderoso durante o campeonato mundial?
* No inglês, o verbo “abrigar”, to harbor, permite um trocadilho com o substanrivo harbor, “ancoradouro”. (N. do T.)
de Espere a primavera, Bandini
Editora Brasiliense, 1990