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Fim de caso

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Confissões de um homem decepcionado com a literatura

“Consideramos malvados a quienes no encubren ni ocultan ni mienten.”
(Javier Marías)

Se algum dia eu cheguei a lhe dizer que a amo, faça-nos o favor de esquecer! Consulto a minha memória e não encontro um fio de voz ou um pensamento nesse sentido. Pode ser que você, com aquela mania de resgatar do lamaçal de diálogos cadáveres que nunca existiram, conclua a partir de alguma das minguadas frases ditas por mim, que cheguei a amar alguém. Na minha exasperada prudência, a que você sutilmente chamava de paranóia, nunca me deixei ir além de um afagar no seu cabelo ou de um beijo mais prolongado. Depois, sempre foi do seu conhecimento a minha incapacidade de carinho, de correspondência na intimidade. Exclua da sua memória auditiva todas as palavras gentis que inadvertidamente exprimi no calor da empolgação e aproveite a ocasião para riscar também a minha voz do seu depósito de sons. Pense que sempre fui um mudo e que nunca prometi nada (o que no fundo, se considerarmos o seu desesperado capricho de me prender, é a pura verdade). Anule também todos os orgasmos, se é que a sua comedida preocupação com o futuro não a tenha induzido a fingir gritos ou mascarar o pseudogozo. Embora eu tenha me esquecido de avisá-la sobre a minha prematura demência, você deve tê-la notado nos meus constantes acessos de raiva contra o que quer que estivesse por perto. E freqüentemente você esteve.

Se me perguntar se foi a sua insistência que fez com que a permitisse perto de mim, não saberei responder, embora ache que tenha sido mais um sintoma da indiferença. O que eu não quero (e lhe explico isso para que não me tome também por frio) é que alguém perigosamente se aconchegue e me cegue. Porque se chegasse o dia em que eu acordasse contigo ao lado da cama ou mesmo de baby doll trazendo o desjejum, o meu e o seu numa única bandeja, Michele, eu lhe digo: enlouqueceria por completo. Aproveito o enorme papel que embrulhava a rosca para lembrá-la: não procure nenhum motivo nessa minha atitude. Acho que demorei muito tempo em sua vida. As coisas são assim, simples, poderia resumir que a odeio, mas temo que tome como intriga pessoal quando na verdade o meu ódio se estende a tudo que existe, particularmente às coisas que se movem e/ou respiram. Poderia até invocar a filosofia que você tanto cultua, ao contrário do resto de suas companheiras, quem sabe até citaria um desses Bergson que lê afobadamente entre uma estação de metrô e outra para lhe explicar a minha aversão pela vida, mas sinto que contigo é mais fácil não me perder em devaneios para não dar margem a novas interpretações. Depois já não leio mais e estou fazendo um esforço muito grande para esquecer o que já li. Divirto-me com todas as novelas que passam na televisão, a tal ponto de não querer sair nunca do sofá que coloquei devidamente em frente à tela. E para que eu não perca um mínimo gesto dos atores que aprendi a amar, trouxe também para perto a geladeira e todos os aparatos para que eu finalmente me sinta à vontade dentro de minha sala. Sobre o trabalho, você pode até pensar que eu tenha me fatigado com a sua insistência para tentar algo melhor, mas não se preocupe por tão pouco. Deixei-o ontem e você precisa ver o tamanho do sorriso no meu rosto! Afinal de contas, qual era o meu objetivo trabalhando ao lado daquele bando de hienas indesejáveis, que devem ter feito dezenas de cursos para aprenderem uma batelada de risos, bajulando com a peçonha da expressão os clientes pegajosos e inocentes? Não sou assim, Michele, e o meu pacto agora é este: a indiferença. Vou comer e beber até o dinheiro acabar. Depois arranjarei outro emprego ao qual novamente não me adaptarei? Não, minha cara, não se fie na lógica: ainda não sei o que farei. Mas a julgar pela felicidade que me acompanha, provavelmente ficarei quieto no mesmo sofá, esperando a morte ou uma ajuda (que definitivamente nunca pedirei a ninguém). Por isso, contenha-se, Michele, esta carta nada tem de queixa ou de pedido, chego a questionar se a remeterei algum dia. Toda essa babaquice de que fui até o fim do mundo para buscar sei-lá-o-quê não me interessa mais, pretendo me enraizar, se é que me compreende. Houve dias em que até chegava a pensar em sair do meu estado de apatia (o que você chamava de letargia) para lhe responder qualquer coisa que eu tivesse resgatado na minha reserva de argumentos, mas a sua ansiedade para nos ver discutindo era tamanha que não me incentivava a isso. Para que você não se descontrole demais e tente buscar explicações plausíveis para o que estou sentindo, vamos chamar isso de desespero. E para completar a sua ilusão e também para que não tenha que freqüentar uma equipe de psicólogos, digamos que também estou bebendo. Assim será mais fácil você me esquecer de vez e não me procurar mais, porque sei da sua aversão por bêbados, só de vê-los, começa a sentir náuseas. Sabe, Michele, lembro-me que quando criança já era acometido de dores insuportáveis (mas não se excite, não contarei o motivo delas): eu dizia a todos que não pedira para nascer. Agora posso até fazer uso dessa explicação pueril para também lhe mostrar o que me atormentava: o nascimento. Uma vez dotado de corpo e de toda a engenharia para fazer as pessoas sofrerem e sabendo inevitável que isso acontecesse com demasiada freqüência, optei pelo silêncio, o mesmo que você denominava de frialdade tumular. Michele, bem vejo agora que você deve ser uma poetisa ou lingüista frustrada, porque tamanha capacidade para nomear as coisas é um talento desperdiçado. Parece que não percebeu (tão distraída e tanto lhe falta o tino) que esteve adelgaçando o meu espaço, adaptado-o ao seu jeito, como se aparasse a roseira do seu jardim ou mesmo extirpasse de lá a beldroega, talvez o meu silêncio tenha contribuído para que tal idéia se configurasse na sua cabecinha dedutiva, mas eximo-me de qualquer culpa. Deve estar se perguntando por que trato de ervas e flores quando o assunto não beira o reino vegetal, então vou ser mais claro: lembra-se do quanto você odiava aquelas musiquinhas melosas que ouço até hoje com prazer redobrado? Como era do seu feitio, nem disfarçava o seu desprezo, de cara olhando para o aparelho de som, mais precisamente para o botão “desligar” ou “off”, como você prefere com sua mania de americanismo. Quer que eu repita que não quero mais ver os seus cachos loiros na minha frente? Aproveite e não me traga o seu corpo junto com eles! Se sentir tanta raiva de mim por esse surto inesperado (para você) e tiver vontade de me matar, faça o favor! Indico-lhe até onde escondo as armas (objetos que você sempre chamou de trabucos): ficam na cozinha, dentro de um pote, aquele que você supunha abrigar biscoitos ao invés de revólveres. Escolha: deve ter algum deles que se encaixe mais perfeitamente na sua delicada mão de psicóloga. Por falar na profissão, não queira me fazer mais um caso clínico seu, não teste a minha paciência que eu também não conheço seus limites. Aqui lembro-me do personagem daquela novela das oito (você sabe da minha inútil memória para nomes), uma frase que acho brilhante: “você não é nada”. Mas eu não chego a tal extremo, principalmente por saber da disparidade de nossos conceitos básicos. Deixe-me em paz, Michele, chega de trazer bolinhos de chocolate feitos por você mesma, chega de me contar sobre as suas amigas, da sua mãe, basta de trazer o seu irmão aqui para forçar uma amizade impossível, basta de suas artimanhas para me fazer seu homem. É com mágoa que eu me lembro quando parou de tomar o anticoncepcional e chegou a engravidar (logo você, Michele, que sabe tão profundamente da minha repugnância por crianças), acho que me apoquentei tanto a ponto de sugerir o aborto (que me é hoje completamente indiferente, como todo o resto). Esse tipo de discussão não desejo mais. Quis a sorte ou o seu Deus (aquele que você tentou com esforço desmedido – hoje reconheço – me incutir) que a criança abandonasse o seu útero com apenas três meses. Também não faça caso das suas puladas de cerca, pois não me importei com nenhuma. Sei que transava com outros além de mim (talvez por causa da minha inconstante presença na cama) e sei também que você escancarou pistas dos seus romances por onde passou. Encontrei-as todas, é claro, desde as rosas com bilhetes sacanas (“você estava apetitosa”, “sua boceta raspada me deixou maluco”, “nunca conheci mulher mais gostosa” e outras obscenidades que me poupo de escrever porque você já as conhece) até as cuecas alheias junto às minhas meias. De que adiantou? Perdi a cabeça e esconjurei a sua moral, como planejou? Desconfiei mesmo que você fosse necrófila, tão impossível era de não perceber a minha morte. Sei, hoje poderíamos ter um casamento perfeito, mentindo um para o outro, escondendo no bojo das aversões secretas o descontentamento com detalhes um do outro, traindo de um jeito mais sensato, tomando cuidado para esconder os fatos, podíamos hoje ser um casal, bem sei da sua vontade a respeito, mas talvez o seu instinto tenha lhe passado a perna e eu seja muito mais louco do que pensa. Agora me questiono se o seu alvo não seria um rico industrial (sabemos que a sua beleza, inteligência e espírito competitivo podem almejar tanto) ou mesmo um desses executivos cdfs que falam dúzias de línguas. Não só viveria bem no seu ninho devidamente construído para os filhos como também teria tempo de sobra para os seus casos. Mas creio que aí você não suportaria o tédio, é, o mundo é mesmo estranho e o homem nunca está satisfeito com o que tem, será que foi por isso que você resolveu me procurar, foi aí que você bateu à minha porta, com suas roupas curtas (julgando que me importasse tanto assim com sexo) e tentou me dissuadir da minha antiga convicção, vendendo-se tão bem a ponto de em breve eu comprá-la? Sabe que não suporto mais os seus beijos na minha orelha, os incessantes pedidos para eu acarinhá-la e tudo o que diz respeito a você? Até vai se impressionar e fazer um esgar de incompreensão, como se nunca esperasse por isso. Só que, diferente de você, jamais lhe dei pistas: não, não sou dessas coisas: escancarei o meu paiol de verdades, a cuja ação você fez vista grossa, (ou no íntimo quis atear fogo, como se a fogueira consumisse o que penso que sou) como se eu estivesse brincando, embora sempre a alertasse do contrário. Não quero que me procure e me venha com o seu punhado de indignações, utilizando artifícios femininos (que a sua psicologia apenas aguçou), dizendo-se frágil e quiçá estampando um choro coreográfico e sentimentalóide, vociferando que a enganei et caetera, não desejo principalmente porque sei do risco de você chegar durante uma novela e me forçar a escutá-la. Não pretendo a preço nenhum me desfazer da minha diversão por conta de bobagens. Faça o favor também de não tomar isso como uma dica e vir em outros horários, porque afora esses, os demais passo dormindo. Não vá, repito-lhe, encontrar palavras que não escrevi e motivos para exercitar a sua piedade, se digo que não me interessa a caridade ou a morte, é a mais explícita verdade. Façamos um trato (coisa que nunca fizemos durante o nosso relacionamento) e quando você receber (e após a sua atenciosa leitura) este papel ponteado de gordura com a minha letra perfeitamente decifrável (e aqui já antevejo a sua reação), faça-nos o favor de rasgá-lo, como se estivesse recortando também o período em que estivemos juntos, ou mesmo picando-o em quantas partes lhe aprouver. Em seguida não se esqueça de jogar tudo ao lixo, como se nada tivesse acontecido durante esse tempo em que você imaginou que estivéssemos juntos.