de Geração Beat – Antologia
Org. por Seymour Krim
Editora Brasiliense, 1968
Em Pueblo Colorado, no meio do inverno, Cody sentou-se em um banco de bar às três horas da madrugada na triste situação de quem está sendo procurado pela polícia na América do Norte, ou pelo menos procurado durante a noite (batendo com a moeda no balcão como alguém que mata uma mosca com a mão ) – América, a palavra, o som dessa palavra é a entonação da minha infelicidade, a expressão do meu amargo e estúpido sofrimento – entre minhas recordações felizes não consta o nome da América, elas possuem um nome bem mais íntimo, mais pessoal, mais secreto, um nome apenas balbuciado – América é ser procurado pela polícia, é ser perseguido através do Kentucky e do Ohio, é dormir em estábulos cheios de ratos ouvindo os gemidos do vento nos telhados de zinco dos silos sombrios, é o retrato de um herói nas revistas policiais, é a hora impessoal da noite quando as pessoas se sentem perdidas nas encruzilhadas das estradas e ninguém se importa – América é o país onde ninguém tem o direito de chorar consigo mesmo – É onde os gregos lutam para serem aceitos, se bem que muitas vezes venham de Malta ou de Chipre – América é o que ficou colado à alma de Cody Pomeray, o ônus e o estigma – isso quando um enorme sujeito vestido à paisana surrou-o em um quarto dos fundos até que ele falou de alguma coisa que já não tem mais importância alguma. América (QUADRILHA DE JOVENS SEXO ENTORPECENTES E CARROS!) é também a luz neon vermelha e as coxas num hotel barato onde à noite os bêbedos trôpegos saem para as ruas, como um enxame de baratas, quando os bares se fecham – onde as pessoas, milhares de pessoas, estão chorando e mordendo os lábios nos bares e nas camas vazias, onde há sempre alguém se masturbando em algum canto escuro – Existem caminhos malditos atrás dos postos de gasolina onde cachorros assassinos rosnam atrás de cêrcas de arame farpado e onde surgem de repente carros da polícia, como se fugissem de algum crime inconfessável, mais vergonhoso do que as palavras podem expressar – onde Cody Pomeray aprendeu que as pessoas não são boas, elas querem ser más, elas gostam de apanhar e bater – é onde as cenas do amor transcorrem em meio a gemidos de raiva e de dor – a América transformou o rosto de um jovem em algo doloroso de se ver, rodeou suas pálpebras de olheiras fundas e negras, tingiu seu rosto de uma côr desbotada, cresceu pêlos na testa que antes era lisa como o mármore, transformou seu desejo ardente em uma sabedoria silenciosa e muda (ele não conversa mais, nem consigo mesmo, no meio da noite maldita) – ah os ruídos das xícaras de café na tristeza infinita da noite – Alguém está lavando a louça na pia a essa hora da manhã (e tudo isso para nada, para nada, num Colorado desértico e ventoso) – Ah e ninguém se importa mas o coração no centro da América haverá de pulsar novamente quando todos os vendedores morrerem…
América é onde um jornaleiro miserável e raquítico dorme num bar, seu rosto amassado como se houvesse sido repetidamente esmurrado contra o meio-fio em frente à sua banca – onde marginais com cara de fuinha trabalham parte do dia como passadores de drogas, roubam os bêbedos, prostituem-se com homens e vagam pelas ruas sem destino certo – onde as pessoas esperam, cansam de esperar, onde os casais pobres dormem abraçados em velhos bancos de madeira enquanto os ventiladores, os aparelhos de ar condicionado e os motores todos da América zumbem na noite morta – onde os pretos bêbedos, esfarrapados, exaustos apoiam os rostos sombrios nos braços duros dos bancos e dormem com as mãos caídas para os lados, os beiços espichados para a frente como faziam em criança numa noite de luar na casa de tábuas em que moravam no Alabama – ou então numa casinha no bairro de Jamaica, em Nova Iorque, rodeados de negrinhos e cachorros, as ruas animadas num sábado à noite com o movimento dos carros, os bares repletos de gente, pretos bem vestidos passeando de cabeça erguida pelas ruas, a alegria de todos transbordando exteriormente – América é onde o jovem trabalhador que andava antigamente de calça cáqui, botinas do exército, boné do posto de gasolina na cabeça e um blusão de duas cores como usava a “turma” dez anos atrás, cochila agora de cabeça baixa no ponto final do bonde com a camisa suja de um trabalhador noturno, a palma da mão virada para cima como se fosse receber alguma coisa da noite – a outra mão caída, forte, musculosa, patética, tomada trágica por circunstâncias inconfessáveis – a mão direita aberta parece a de um mendigo, os dedos sugerindo o que ele merece e deseja receber, formulando seus desejos secretos, o polegar quase encostando nas unhas, como se estivesse dizendo no sonho o que não ousa confessar acordado “Por que vocês tomaram tudo isso de mim, impedindo que eu descanse na paz e na suavidade da minha cama em lugar de vestir essa roupa nojenta e sentar nesses bancos duros de madeira esperando a hora que esse negócio se decida a andar” e mais adiante – “Não quero mostrar minha mão, mas no sono a gente não sabe o que faz e por isso a levanta, vamos aproveite esta oportunidade para ouvir minha queixa, eu estou sozinho, estou doente, estou morrendo”.(um outro que está dormindo geme em voz alta, ele não deveria estar nesta sala de espera, antes numa enfermaria, num pronto socorro, numa sala de operação, num campo de batalha, nas portas do juízo final) – “veja minha mão erguida, leia o segredo do meu coração, dê-me o que lhe peço, dê-me sua mão, leve-me para um local seguro, seja bom comigo, seja delicado, sorria; estou exausto, desisto de lutar, confesso-me vencido, quero ir para casa, leve-me para casa Ó irmão encontrado na noite, leve-me para casa, guarde-me num lugar seguro – leve-me para onde não exista mais casa, onde tudo seja paz e tranquiIidade, leve-me para o lugar que nunca existiu ou que nunca foi conhecido, leve-me para a família da vida – Minha mãe, meu pai, minha irmã, minha mulher e você meu irmão e você meu amigo – leve-me para a família que não existe – mas não adianta, não adianta, não adianta, acordo e daria tudo para estar na minha cama, Ó meu Deus ajudai-me”. Esse sonho se repete todos os dias – ouço os passos de mais um que se aproxima, escuto a litania das vozes que se lamentam, as portas que rangem –