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O herói solitário de Fome

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Por Rolf N. Nettum

O romance de Knut Hamsun, Sult (fome), publicado em 1890, abre um caminho novo à literatura escandinava. Entra em cena um tipo diverso de homem: o homem moderno, nervoso, intelectualizado, sensível, produto – e vitima – da expansão industrial e científica do séc. XIX. Nele, o equilibrio dos nervos surge comprometido por uma civilização materialista, barulhenta e sem alma.

Esse jovem poeta que vagueia por Oslo – então conhecida como Cristiânia – quase morto de fome, representa um novo clarão de alma. Através dele, exprimem-se o mundo secreto do subconsciente, sensações vagas e irracionais, reações aparentemente contraditórias, estados de espírito fugitivos e mutáveis. Presa de seus caprichos e instintos, nada tem de um ente razoável. Sob pressáo da fome, dir-se-ia que o muro divisório entre consciente e inconsciente dixa de existir. As reações nervosas, até então insignificantes e fortuitas, atingem proporções grotescas.

Fome é um romance egocêntrico, longo e exclusivo monólogo interior; mais exatamente, diálogo, pois se situa em dois planos opostos: há um ëu superior”, que toma a palavra, observa espantado o “eu inferior”, impoe-se a tudo que se passa no subconsciente, diverte-s, brinca com ele e castiga-o. Aluta pela subsist6encia é o motivo sujacente. Essa luta encarniçada, porém, não exprime de modo algum acusaão `a sociedade. A personificaão do eu em Fome não tem o menor interesse social. Aluta pela vida assume para ele outra significação. Sente-se que o personagem se bate contra forças mais fortes que a sociedade, contra um ser invisível que pretende alquebrá-lo e humilhá-lo: “Jeová, o grande Baal”, é como ele o chama na cena principal, ao ameaçar o Deus desconhecido. Luta por salvaguardar sua integridade espiritual. Da primeira à última página, sua luta pela existência é um combate de Jacó.

A peleja excita-lhe o orgulho e os recursos morais. Vale como provação uque o distingue dos outros. Ele, somente ele, sente fome em tamanho grau, e somente ele tem força para resistir. É, a seus próprios olhos, um homem excepcional. Poeta, a fecundidade inesgotável do seu cérebro constitui resposta à provocação. A imaginação transfigura a realidade, embeleza-a, torna-a maravilhosa,mascarando decepções e vergonha social. Sob a embriaguez da inspiração, ele experiemta estados de êxtase, eleva-se acima do mundo dos pardieiros sujos, dos policiais inflexíveis, da miséria permanente. Seu espírito febril faz de uma prostituta a princesa Ilaiáli.

Não tem o menor contato com os outros homen; permanece totalmente isolado. Isso, entretanto, não significa privação: ele se basta a si mesmo. Sem embargo, lateja a angústia sob esse culto egocêntrico, uma angústia mortal, que se manifesta mais nitidamente na cela onde ele passa uma noite de terror. O medo de desaparecer impele-o muitas vezes para o porto, para o mar. Fugirá à luta pela existência, afogando-se? Renunciará ao orgulho, declarando-se vencido? Finalmente deixa o país em um navio estrangeiro.

Não parece fácil concluir pela derrota, pois a força vital de sua alma é por assim dizer invencível. Isto se explica, entretanto, por sua instabilidade, seu poderoso instinto de conservação, seu vigoroso medo de morrer, estreitamente unidos. A queda das alturas do êxtase às profundezas do desvario resulta da tensão reinante em sual alma.


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