Por Wilton Rossi
Publicada há pouco pela Companhia das letras, a primeira obra em prosa de Pedro Juan Gutiérrez surpreende por dois motivos. Primeiro, funciona incrivelmente bem como uma impressionante coleção de instantâneos que cobrem um período muito duro para o povo cubano, que compreende exatamente a fase em que a ajuda soviética deixara de chegar e o embargo norte-americano se fazia sentir com toda a força. Em segundo lugar, a Trilogia suja de Havana nos surpreende por seu caráter literário, recheada com inúmeros tipos maravilhosos que Gutiérrez retrata com habilidade e talento.
Em dezenas de histórias narradas em primeira pessoa, sempre com uma secura forjada na luta diária pela sobrevivência em meio à crise, Gutiérrez nos apresenta a incrível fauna cubana, em tantos momentos tão similar ao nosso povo brasileiro, ao mesmo tempo protagonista e coadjuvante de uma crise perene. Esta luta transcende o cunho ideológico da disputa que arrasou o país nas últimas duas décadas e, como resultado, vê-se muito pouco de política na Trilogia suja de Havana. O que vemos é uma procissão de tipos fascinantes na sua busca pelas coisas triviais (e essenciais) da existência: comida, bebida, abrigo, companheirismo, sexo:
“A crise era violenta e penetrava até o menor cantinho da alma da gente. A fome e a miséria são como um iceberg: a parte mais importante não se vê a olho nu. Mas é preciso ir aos poucos, companheiro, sem perder o controle. Pouco a pouco nos inseriremos nesse mundo complexo e na economia de mercado, mas sem abandonar os princípios etc. Ah, caralho! Os inesquecíveis anos 90! Mas eu já estava me recuperando. Me recuperava de tudo. E estava repleto de sexo. Descarregava duas ou três vezes por dia, com Luisa. E isso é muito bom para o espírito. Descarrega-se o sêmen à medida que ele é fabricado. Você mantém os depósitos vazios e muitas coisas se ajeitam sozinhas, você não precisa mais se preocupar com elas. Eu sempre digo: um homem sem mulher é um desastre total.”
As tiradas picantes são mais um dos atrativos do livro. Melhor seria falar em pura sacanagem, tal é o grau de carnalidade das aventuras sexuais relatadas nas histórias, em sua maioria protagonizadas pelo narrador, supostamente o próprio Gutiérrez, mas sempre funcionando como fio condutor que leva o leitor a conhecer um pouco mais da vida desta gente fascinante. Um dos pontos altos é a história em que narra sua passagem pelo apartamento de duas lésbicas. Ferido em seus brios de macho ao ouvi-las em sua intimidade, o “latin lover” adentra o quarto sugerindo uma noitada de sexo a três. Mas qual não é a sua surpresa ao ser atacado com extrema violência por uma das mulheres, que o deixa completamente arrasado no corredor do prédio.
Mas nem o narrador nem os outros personagens deixam a peteca cair. A Cuba dos anos 90 é um país exclusivamente de sobreviventes. E Gutiérrez nos lembra disso a todo momento. Não importa o que precisa ser feito em nome da sobrevivência. O habaneros conseguem seguir em frente. Mulheres se prostituem, homens traficam carne e bebidas ¾ que não podem ser vendidas paralelamente, pois o governo é responsável pela distribuição de alimentos ¾ e chegam a extremos inimagináveis, como o funcionário do necrotério que vendia fígados humanos, ou patéticos, como quando o narrador vende latinhas reaproveitadas para consumidores de sorvete (sim, lá não há copos descartáveis). É ¾ chamemos assim ¾ o “jeitinho cubano”. “Gosto de gente assim”, conclui Gutiérrez. “Forte. Os frouxos sempre se lamentam e choram. Os fracos acham que hoje tudo acaba. Na verdade é o contrário: é hoje que tudo começa.”