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Waly Salomão, Driblando a maldição – Por Heloisa Buarque de Holanda

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Hoje, rimar poesia com pedagogia produz, no mínimo, um razoável mal-estar. A poesia didática anda com baixíssima cotação na bolsa da crítica de arte; e a didática da poesia discute, em crise, sua desburocratização. É exatamente esse campo adverso que Waly Salomão e Antônio Cícero elegem para a curiosíssima performance batizada como Núcleo de Atualidades Poéticas. Antes de mais nada, acho importante apresentar a dupla. Waly Salomão não é de hoje que vem aprontando. Em 1972, quando lança seu primeiro livro, Me Segura Qu’Eu Vou Dar Um Troço, desafia e desmente o consenso quanto à apatia e à inoperância da produção cultural pós-AI-5. Disse então Waly: “Este livro pouco significa para mim se não representar uma energia propulsora, se não apontar para a superação da asfixia do quadro circense em que nós estamos balançando na própria corda bamba”. Me Segura pode ser visto como um livro-recorte, montagem de fragmentos, quebra-cabeça de flagrantes que promove o irônico casamento entre o erudito e o bárbaro, o vulgar, o material agressivo dos textos criminais, dos textos oficiais, ou como o define o autor, “Um realismo de la rivage”. Em certo sentido, Me Segura surge como o desdobramento possível na literaturadas sugestões tropicalistas de 1967/68. Marcando sua diferença frente à literatura marginal que então se fazia, os trabalhos de Waly pretendem claramente sua inserção (ainda que maldita) no sistema de produção cultural. Letrista, parceiro de Caetano, Gil, Macalé, Moraes Moreira & outros, editor (Ed. Pedra Q. Ronca), organizador da revista Navilouca e do livro Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto, Waly investe ainda nas áreas do cinema, do videotape e da fotografia onde monta a série Babilaques com Marta Braga. Dele disse Glauber em entrevista recente: “Acho que Waly Salomão é a matriz da poesia baiana do tropicalismo. A poesia de Gil, Caetano, são poesias bebidas na fonte que chama Waly Salomão.” Antonio Cícero, filósofo, mestrado nos EUA com a tese A Consciência de Si de Kant e Hegel, foi durante a década de 70 professor de Lógica e de Metodologia das Ciências sociais na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Estácio de Sá. Poeta e letrista, é autor, entre muitas outras, do hit “O Lado Quente do Ser” (cf. trilha sonora da novela Baila Comigo). Mestre Waly, o batalhador maldito dos 70, Antonio Cícero, o poeta kantiano da triste universidade pós-68, juntam-se agora numa parceria inesperada e ocupam a Oficina Literária de Afrânio Coutinho na divisa que separa o Leblon de Ipanema. Um show? Um curso? Um espetáculo? No dizer de seus idealizadores, a abertura de um espaço, modelo 80, para dar a palavra ao poeta. Segundo Waly, esse projeto procura “driblar uma coisa de maldição a que eu estava ligado, reclarificar meus objetivos, procurar novas armas para um momento, potencializar minha capacidade de mudar”. Já Cícero, filósofo, procura “a forma do poeta aprender pelo contato, implementar, através da poesia, a reflexão, a poesia como uma maneira de falar do mundo, o remapeamento de uma atitude”. Assim, numa moderníssima coligação com Afrânio Coutinho, os poetas pedagogos, duas noites por semana abrem o auditório da Oficina para o que der e vier. Lança-se mão de cenografia, livros espalhados por toda parte, iluminação especial, som ambiental, poetas visitantes. Textos xerocados (chamados agora de lâminas laboratoriais) circulam com trabalhos de Hoederlin, Mario Faustino, Dante, Murilo Mendes, Petrarca, Carlos Drummond, Leopardi, Oswald de Andrade, Sosígenes Costa ou Maiakovski. Ouvem-se vozes de Pound, Vinícius de Moraes, Dylan Thomas ou a Ode à Alegria de Schiller/Beethoven. A leitura do jornal do dia é encaminhada com novas cores. Os 25 alunos inscritos falam, escrevem. A lógica do jogo define uma pedagogia. Para os mais nostálgicos e desavisados pode-se encontrar até uma paródia da aula clássica com dever de casa, arguição, exercício de classe e ditado. Na sala, Waly polemiza apaixonado, enquanto Cícero desenha palavras numa grande trip etimológica.

Para além dos aspectos propriamente didáticos, pode-se perceber um interesse a mais no Núcleo de Atualidades Poéticas: algo que poderíamos chamar de mercado cambial poético, um espaço moderno de divulgação e invenção, uma troca de produção e informação que, no dizer dos organizadores, presta, de certa forma, uma homenagem ao extinto Suplemento Dominical do JORNAL DO BRASIL, que agora ressurgiria se fazendo “ao vivo”.
Poetas, letristas e artistas gráficos convidados trazem intervenções inesperadas. Cacaso, Caetano Veloso, Galvão, Moraes Moreira e Erasmo Carlos dão depoimentos e pensam a relação da música com a poesia. Luciano Figueiredo e Oscar Ramos (os melhores designers da praça) trazem um tape gravado com fragmentos de poesia e dão uma aula prática de intervenção gráfica na superfície do jornal. Poesia. Circula pela sala um texto que diz: “Evidenciar a ocorrência de fenômenos estranhos e não previstos ao sentido utilitário e imediato do jornal: reciclagem espacial e descobertas orgânicas no corpo da página impressa”. Som ambiente; o tema do filme Ladrão de Bagdá. Sexta-feira última, Angela Mellin leu um texto que escreveu mobilizada pela sua experiência no N.A.P.; Haylle Gadelha apresentou ideogramas chineses e Luís Carlos Maciel pensou e discutiu sua trajetória desde que se declarou pós-marcusiano.

O espaço aberto por Waly e Cícero não é fácil de ser definido. Numa primeira observação, eu diria (estudiosa que fui de Me Segura) que se trata de um superpoema improvisado a cada encontro, na linha Pound-Tsé-Tung, bem ao gosto de mestre Waly. Um curso (?) de poesia onde salta aos olhos a preocupação central com a forma poética do próprio curso. Fragmentado, dramatizado, não asséptico, lançando mão despudorosamente dos recursos do show-business e potencializando os aspectos de complementariedade dos professores-atores: a filosofia e a poesia. O próprio programa do curso parece sugerir mais do que qualquer opção metodológica, a imagem de um enorme caderno de apontamentos, estocagem de provisões para a criação poética. Lembro-me de performance semelhante, onde notas, impressões, recortes, interferências, fragmentos de poemas, rabiscos, cadernos, montam-se e desmontam-se nos 100 slides da série Babilaques, a colorida arte poética de Waly, ou do grande jornal dramático de Me Segura Qu’Eu Vou Dar Um Troço. Performance ao vivo, o Núcleo de Atualidades Poéticas investe agora nas possibilidades da dobradinha poesia-oralidade: a declamação dos poemas, a dramatização de textos, a pesquisa das várias formas de leitura, a homenagem às transmissões radiofônicas de Dylan Thomas.

Poder-se-ia ainda pensar na tradição beat de intervenção como as incursões na Universidade de Ginsberg, Gregory Corso ou Kerouak.

Pistas falsas. O projeto implícito do Núcleo de Atualidades Poéticas talvez passe por tudo isso, mas sua maior importância diz respeito à sintonia que revela com certas atitudes sintomáticas da produção cultural masi recente.
Em meio à perplexidade mais ou menos geral em que se debate a formulação de um projeto cultural para o espaço aberto à produção intelectual e artística nos anos 80, alguns sinais podem ser percebidos como possíveis tônicas desse projeto: a atuação imaginativa no interior de espaços legitimados, a procura não ortodoxa de contatos, o diálogo com áreas e grupos diversificados, a releitura dos clássicos, a preocupação com a qualidade técnica (a respeito é interessante lembrar o recente lançamento da cuidadíssima Coleção Capricho, reunindo a nata dos poetas independentes dos 70), a urgência da reavaliação e do remapeamento. E, sobretudo, a sensibilidade para a invenção de “novas armas para um novo momento”.

Tudo isso não significa, de modo algum, que nossos “malditos”penduraram as chuteiras. Prova dos nove: no quadro negro do Núcleo de Atualidades Poéticas: o velho Baudelaire sopra para os alunos – “A civilização não está no gás, nem no vapor, nem nas portas giratórias. Ela está na diminuição dos traços do pecado original.”

Texto publicado no caderno B do “Jornal do brasil”, 10 de outubro de 1981

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