Novelha Cozinha Poética
Pegue uma fatia de Theodor Adorno
Adicione uma posta de Paul Celan
Limpe antes os laivos de forno crematório
Até torná-la magra-enigmática
Cozinhe em banho-maria
Fogo bem baixo
E depois leve ao Departamento de Letras
Para o doutor Professor dourar
1
cidade dura e arreganhada para o sol
como uma posta de carne curtida ao sal –
onde na rua do maracujá adolesci
e, louco, sorvia a vida a talagadas de cachaça
de alambique.
graveto-do-cão pitu luar do sertão.
uma ponte corta um rio de fazer contas.
arco e flecha de Sultão das Maltas
mira certeira as ventas do dragão lá na lua.
uma seta e um nome tupi de cidade em uma placa
– é, é, jequi, cesto oblongo de cipó pra pegar peixe
n’água, é, é. –
e a rua de paralelepípedo e a rua de chão batido
e a outra rua metade paralelepípedo metade chão batido
lembra jurema pé de joá cacto mandacaru.
fruta de palma perde os espinhos
mergulhada dentro da bacia cheia de areia.
bolo de puba umburana flor de sisal.
cidade dura e arreganhada para o sol
como uma posta de carne curtida no sal,
meu museu do inconsciente
é um prédio mais duro de roer
mais arreganhado para o sol
mais curtido nas salinas do canal lacrimal.
2
o anúncio ditava:
…”a farmácia estreita da rua larga”…
abro
minha caixa de amor e ódio
abuso
da enumeração evocativa,
desando a disparar:
rua alves pereira…
rua apolinário peleteiro…
rua do cochicho…
distingo bem o caroço duro de umbu chupado
da bostica, da bostiquinha redondinha
que nem biscoito de goma
que a cabra da caatinga fabrica.
de pouco vale agora essa sabença.
o chão e tudo é só paisagem calcinada
e tela deserta e miragem e cena envidraçada.
janela de marinetti
sem vista panorâmica
me lixo pro louvre da vitória de samotrácia
apois aposto na corrida futurista da preá
pego carona na rasante de um urubu
diviso lajedo molhado espelhando umbuzeiro gravatá.
um aleijada esmola e merca rolete de cana
três ararsa dois micos uma jibóia enrondilhada.
uma velha choraminga e mói dez tostões de erva
mais cinco mil-réis de sementes de uruncum.
jegues carregados de panacuns.
pau-ferro rolimã curral dos bois.
3
uma ponte corta um rio de fazer contas.
pego as contas dos olhos e as enfio
nas platibandas das casas coloridas.
rua das pedrinhas… borda dam mata…
guito guitó… bolha de mijo de potó…
a profa. teresinha fialho
e a família inteira de doutor fialho
no poleiro das galinhas verdes de plínio salgado.
verdes, verdes. e o amarelo aceso do enxofre
no fundo da talha d”agua-de-beber.
que não escutei “queto!”, ouvir não ouço “coitado!”.
urubuservar a vida besta do alto do urubuservatório.
por amor de quando fera e peixe e planta e pedra e ave
e besouro e estrela e estrume e grão de areia.
cada qual de per si,
e os jeitos e as qualidades
das palavras
das quimeras
dos seres,
separados ou em uníssonos
silibavam oráculos…
a ti confesso, janela de marinetti:
comparacem até o mirante
mínimas brasas inquietas
catulptadas pelas criciúmas
dos rios pretos enchidos dos cafundós-do-judas
(minúcias de azinhavres,
línguas de trapos e de caroços,
de troncos e tocos,
hemorragias de baronesas e molambos);
4
na porta da casa facista
o audaz tenor bambino torregrossa assassina lua e luar.
a acha de lenha do passado figura fósforo queimado
carvão apagado
tição perdido e achado aceso
(no meio-dia calcinado carvão forja diamante)
que crepita confundido com as paredes
internas
externas
do porão da bexiga
que crepita fundido no fole refenfem
fem fem
femfem
no resfôlego da tripa que toca gaita,
a tripa gaiteira da folia dos magos reis do boi janeiro.
quem foi que disse que janeiro não saía
boi janeiro tá na rua com prazer e alegria.
essa alegria, motor que me move.
nascido com o auxílio das mãos da parteira mãe jove.
para todo sempre confino
o registro da palavra rotina
com o vento e a chuva
com o plúvio e o pneuma
machetados no registro
da palavra enigma.
5
Cidade-Sol.
Heliópolis,
Baalbeck
da minha infância desterrada.
Mega-Ampulheta
desde os tempos imemoriais
fixei residência nesta sala de mixagem
cercado de Lexicon,
Syntaxis,
Spatial Expander,
Omnix,
Scenaria,
Axion,
Flying Faders
compressores,
condesadores.
e aqui restarei estarrecido
por toda eternulidade.
“pode a sorte separar-nos,
ou a morte de um e de outro;
mas o amor subsiste, longe ou perto,
na morte ou na vida.”
sobreviver ao recorte de Machado de Assis.
epitalâmio. epífita. epitáfio.
como se o tempo sucumbisse,
fora do escopo da máquina,
e pairasse, apenas, em algumas ilhas espassas
da anacrônica memória pessoal.
Clandestino
(para Adriana Calcanhoto)
vou falar por enigmas.
apagar as pistas visíveis.
cair na clandestinidade.
descer de pára-quedas
/camuflado/
numa cadeira clandestina
da mata atlântica.
já não me habita mais nenhuma utopia.
animal em extinção,
quero praticar poesia
– a menos culpada de todas as ocupações.
já não me habita mais nenhuma utopia.
meu desejo prag,ático-radical
é o estabelecimento de uma reserva de ecologia
– quem aqui diz estabelecimento diz escavação –
quem arrancará a erva daninha do sentido ao pé-da-letra,
capinará o cansanção dos positivismos e literalismos,
inseminará e disseminará metáforas,
cuidará da polinização cruzada,
cultivará hibridismos bolados pela engenharia genética ,
adubará e corrigirá a acidez do solo,
preparará a dosagem adequada de calcáreo,
utilizará o composto orgânico
excrementado
pelas minhocas fornicadoras cegas
e propagará plantas por alporque
ou por enxertia.
já não me habita mais nenhuma utopia.
sem recorrer
ao carro alegórico:
olhar o que é,
como é, por natureza indefinido,
quero porque quero o êxtase,
uma réplica reversora da república de Platão
agora expulsando pra sempre a não-poesia
da metamorfose do mundo.
já não me habita mais nenhuma utopia.
bico de beija-flor bica glicose
no camrão
em flor.
(de um livro em preparação, sem nome fixo)
Câmara de Ecos
Do livro: Algaravias, Waly Salomão, Editora 34.
Cresci sob um teto sossegado,
meu sonho era um pequenino sonho meu.
Na ciência dos cuidados fui treinado.
Agora, entre meu ser e o ser alheio
a linha da fronteira se rompeu.
1995