“Como vocês vêem,não temos com que nos preocupar,” disse Will Petersen, enquanto nós quatro caminhávamos em direção a uma pastelaria no centro da cidade, “eles enterraram na colina um general que viveu 300 anos & o Monte Hiei, situado no nordeste da cidade, afugenta os maus espíritos”. Assim, não havia muito com que nos preocupar: Quioto é um quadrado cortado em todas as direções como a velha cidade de Ch’ang-an; morros verdejantes cercam seus três lados, com clareiras abertas aqui e ali como numa pintura’ cubista; dois riachos -ao gosto das trutas -atravessam a cidade; não possuem trutas, porém, e são chamados de rios pelos habitantes do lugar. É uma cidade do tamanho de Portland, no Estado do Oregon; nunca foi bombardeada, as casas são feitas de madeira sólida, as ruas são estreitas & sujas, cobertas de pedras, os telhados baixos & inclinados, de várias alturas, geralmente cor de chumbo, recebendo luz de todos os lados; fora isso, há uma quantidade de pinheiros plantados por toda parte. O centro da cidade é animado como em qualquer
Outra cidade, porém mais divertido, repleto de táxis, filas intermináveis de estudantes, vestidas com roupa de marinheiro, que vêm do interior, ou que estão visitando a cidade; sem falar nas velhas camponesas que vêm a passeio. Flanam pelas ruas repletas de cafés e bares vistosos, que se parecem exteriormente com os de Stratford-on-Avon & por dentro com a sala de visita de Christina Rossetti ( influência ocidental) – mas o que todas essas pessoas visitam realmente são os santuários & templos japoneses antigos & Quioto tem milhares deles. Se bem que muita gente não leva mais a sério o aspecto religioso da cidade. Em Tóquio, um conhecido nos contou a seguinte história: quando um turista vai a uma casa de família em Quioto, o dono da casa sente-se orgulhoso em lhe esclarecer que a escova de dentes que ele comprou na cidade foi feita à mão em uma fábrica que existe há 500 anos e que passou de pai para filho durante esse tempo. Todos os habitantes da cidade, com exceção das moças que servem nos bares, continuam a fazer o mesmo trabalho de nove gerações anteriores. Não se vê muitos brancos na cidade, mas os poucos que aí residem estão apaixonados pelo lugar & todos por diferentes razões. Petersen (um pintor originário de Berkeley) está hospedado num colégio de moças onde descobriu o beisebol graças a essas jovens de dezoito anos, com aparência de doze, que passam os dias fazendo ginástica em baixo de sua janela. Lindley Hubbell, o poeta, está encantado com o teatro, não perde um espetáculo & não dá uma palavra enquanto a peça está sendo representada: são geralmente cinco horas de expectativa & atenção girando em torno do amor, cólera ou remorso, ao som de flautas, tambores, com números de dança & cantos. A peça só termina quando tudo foi visto e revisto. Burton Watson conhece atalhos que levam a templos escondidos & que se acham espalhados entre Quioto e Nara; ele se ocupa também na tradução de antigas histórias chinesas, aproveitando o conhecimento que possui do idioma japonês. Phil Yampolsky, também historiador, adora falar no dialeto de Quioto; provoca o riso nos velhos mais sisudos com uma repentina gíria introduzida na conversa. Walter Nowick ensina piano para ganhar a vida & já faz sete anos que se levanta todos os dias de madrugada para ir visitar seu idoso mestre Zen. Quioto possui também, entre seus nativos, alguns tipos fantásticos. Um escultor moderno, de nome Tsuji, com cerca de cinqüenta anos de idade, vive com a mulher & as filhas em uma minúscula casa repleta de máscaras dos mares do sul & da Mrica, sem falar nos livros Sutra devorados pelas traças.
Por intermédio dele, ficamos sabendo da existência de um sacerdote budista chamado Mokujiki comedor de Madeira”, descoberto recentemente, & que viveu cerca de duzentos anos atrás. Era um velho feliz que fazia uma grande escultura de madeira por dia, durante anos. As lascas voavam de suas ferramentas & surgiam sábios. É um prazer comparar essas esculturas com as obras elegantes e inexpressivas da mesma época. No alto do Monte Hiei, no fundo de um bosque povoado de feitiçarias, umidade & sapos, existe um velho templo de paredes escuras & de odor agradável; ali mora um jovem monge que antes estudava economia política & que agora lê livros de filosofia Tendai. Se bem que na última vez que o encontrei, ele estava descansando dos estudos lendo a autobiografia de Charles Darwin, em inglês. Ele fez voto de não deixar a montanha durante doze anos. Na cidade, há uma quantidade de jovens que estudam literatura inglesa. Moças que escrevem estudos sobre Shelley. Outras que apresentam teses sobre “O Amante de Lady Chatterley”. Pouco numerosas são as que folheiam a revista Vogue & que se vestem no rigor da moda. Muitos estudantes universitários, do gênero boêmio, vestem roupas pretas ultra surradas com botões dourados pregados de qualquer jeito. São todos pobres – a maioria dos estudantes vive com 20 dólares por mês – e, no entanto, algumas livrarias possuem as obras de Donne editadas por Grierson, textos críticos de Shakespeare, romances de Graham Greene, Faulkner, livros de Pound. Alguns desses estudantes compreendem também o japonês antigo; mas são uma minoria. Se eles forem até Nara, regressando no tempo, & visitarem o templo de Horyuji, onde existem doze estátuas realmente antigas esculpidas em madeira, pequenas figuras de olhares sonhadores & sorrisos misteriosos, à maneira dos hipsters, é possível que eles não se sintam tão desamparados. Alguns praticantes da doutrina Zen conhecem essa cultura do passado, mas a religião Zen exerce pouca atração junto aos jovens. Ela foi durante muito tempo a religião oficial do Governo, enriqueceu-se & tornou-se mesquinha. Há cinco séculos atrás, o fundador do templo Daitoku, um religioso de nome Daito, viveu embaixo de uma ponte de Quioto durante trinta anos. Hoje em dia, os monges Zen possuem belos templos particulares. Além disso, sentar numa sala de meditação atualmente é como se exibir num circo. Havia visto tantas fotografias de cerejeiras em flor, nos folhetos de viagens, que acabei adquirindo uma enorme prevenção contra elas. Mas agora o inverno terminou, as pessoas estão tomando sol – não estão mais amontoadas & trancadas o dia inteiro em quartos gelados & as cerejeiras estão florindo. Os homens do povo tomam enormes bebedeiras, divertem-se à grande & cochilam nos parques (formas remanescentes dos antigos ritos da fertilidade, diz Marcel Grannet) , & as crianças estão brincando novamente com as pernas de fora. Ninguém poderia ficar indiferente a isso, de sorte que saímos a noite passada para comer uns bolinhos de carne & tomar saqué. Um francês de nome Chamaille, homem alto com uma imponente barba preta e que estava passando férias na cidade, chamou a atenção, desfavoravelmente, da moça que nos servia saqué nos pequenos reservados. Ela apontou com o dedo em direção a ele e exclamou: “Mais um maldito missionário!” (influência das gravuras de livros infantis que representam os missionários vitorianos que vieram ao Japão e construíram as igrejas, como homens grosseiros e de barba comprida). Pode ficar sossegada, dissemos, ele veio aqui estudar a religião Zen. Era como se a roda do tempo houvesse dado uma volta inteira.
De Geração Beat – Antologia
Organizado por Seymour Krim”
Editora Brasiliense, 1968.