Por Vivaldo Trindade
Cidade de Deus, romance de estréia do escritor carioca Paulo Lins, não é um livro recente: seu lançamento se deu em 1997. Todavia, a escolha de escrever sobre ele recai, primeiramente, na importância inquestionável que adquire enquanto obra de arte, depois, por uma necessidade pessoal de dar continuidade ao assunto de que tratei no artigo do mês anterior, onde o citava como exemplo a ser seguido por uma nova geração de escritores comprometida com a idéia de realizar uma literatura brasileira de expressão, entendendo, aqui, o termo literatura brasileira de expressão como o exercício de uma escrita temperada com a realidade brasileira, seja esta realidade a realidade de uma camada da população específica ou global, marginal ou conservadora, rica ou pobre, pura ou mestiça, mas, prioritariamente, brasileira, dentro da sua diversidade de representações e possibilidades. Uma literatura desavergonhada de Brasil, sem medo de mostrar a feiúra de suas chagas ou a exuberância de seus enfeites. Uma literatura onde o brasileiro, objeto último do escritor brasileiro, possa se redescobrir e, uma vez ciente da própria existência, compreender o porquê de ser quem é ou então, em posse do elemento mágico que é a literatura, exercer a alteridade, ser o outro e imaginar novas possibilidades para si.
Paulo Lins dá voz a um Brasil que atrai, hoje, uma quantidade considerável de turistas interessados no exótico e no burlesco de sua face; é o Brasil da favela, a cidade dentro da cidade, o país dentro do país, suavizado pelas lentes de Orfeu do Carnaval de Cacá Diegues ou distorcido pelos mórbidos programas policiais do rádio e da tevê.
Cidade de Deus foi construído a partir de depoimentos reais sobre fatos reais. Contudo, a forma adotada em sua execução não é a de um relatório ou trabalho acadêmico; é, para a nossa felicidade, ficção da melhor qualidade. E a ficção se define na escolha do que é revelado ou omitido no tratamento da informação literária, ressaltando aspectos e ritmos, cores e ambigüidades, conferindo um sentimento de humanidade pouco encontrado na experimentação da vida concreta, em razão de sua intensidade e transcendência, pois na literatura podemos subverter a noção de tempo e espaço, de volume e perspectiva. Por trás do labirinto de becos que forma a favela Cidade de Deus, vemos ousadia e criatividade. Não raro, há momentos em que a metalinguagem se insinua:
“Já dera oito horas quando um grito sustentou no ar a repetição duma só oração: Salgueirinho morreu, Salgueirinho morreu, Salgueirinho morreu!!!
Deu-se um corte na manhã, oriundo de uma oração de verbo intransitivo e sujeito morto. As ruas ficaram cheias de choro pelas esquinas.” (p.111)
Ou uma cortante metáfora:
“A segunda-feira nasceu lesada. Os dias de chuva parecem prematuros, quando não abortados. O frio trazia consigo os encantos da preguiça. Era prazeroso ficar entocado.” (p.168)
Ou uma situação lírica porém irônica:
“Por dia, durante uma semana, chegavam de trinta a cinqüenta mudanças, do pessoal que trazia nos rostos e nos móveis as marcas das enchentes. Estiveram alojados no estádio de futebol Mario Filho e vinham em caminhões estaduais cantando:
Cidade Maravilhosa cheia de encantos mil…” (p.18)
E a linguagem viva e precisa, livre da literachatice, despida do preconceito e receios do uso do coloquialismo, independentemente de este se apresentar em diálogos:
“Quando chegou à vacaria, sentiu medo de encontrar com toda a polícia baludo, resolveu entocar o dinheiro no mato e passou noite no velório procurando a grana”… (p.45)
“Depois que sua avó morreu, Cabeleira resolveu que não andaria mais duro, trabalhar que nem escravo, jamais; sem essa de ficar comendo de marmita, receber ordens de branquelos, ficar sempre com o serviço pesado sem chance de subir na vida, acordar cedão para pegar no batente e ganhar merreca.” (p.51)
“Acreditava que, pelo olhar, podia-se saber se o caboclo era responsa ou não. Sentia sinceridade no olhar de Aluísio e sempre o via falando com todo mundo, pagando cerveja para a rapaziada do conceito. Era um cara que não ficava de chinfra com ninguém”… (p.58)
São muitos os exemplos e todos eles estão voltados para uma estrutura que serve de pano de fundo para a epopéia da violência que se configura no cotidiano de traficantes, polícia, assaltantes, cocotas, playboys, malandros de toda espécie e também trabalhadores e otários.
A violência no romance não é a simples representação da força pela posse, pela aquisição, mas uma forma bruta de exigir dignidade. O que é violento não é a ação dos bandidos, mas antes a fome, a vergonha e humilhação de se sentir um excluído social. São movimentos opostos: o do que exclui e do que não quer ser excluído, gerando no último a necessidade de excluir o que exclui. A favela reduz-se ou amplia-se por uma lógica interna, sua lei é outra que a do restante do país, o poder nela é expresso por uma outra autoridade, os valores adaptam-se às suas terríveis necessidades. Desse modo, mesmo sabendo que a estória cobre os anos escuros da ditadura militar, o texto não exprime a menor preocupação em retratar esse contexto político. Qualquer informação externa ao ambiente da Cidade de Deus nos é completamente inútil para a compreensão da obra. Que importa àquela gente a Guerra Fria? Nada. A luta pela qual vivem é a da sobrevivência, o desejo é o do imediato, pois não se sabe se acordará vivo no outro dia. Então, nega-se a atitude de aceitação de uma realidade distante, transformando um ato de aparente alienação em signo da revolta:
“O primeiro freguês foi olhado duramente pelo menino durante o tempo em que ficou na cadeira. O ódio da pobreza, as marcas da pobreza, o silêncio da pobreza e suas hipérbole eram jogados através das retinas na face do engraxando. É certo que tentou: deu um brilho caprichado nos três pares de sapato que escovou. O quarto foi subitamente puxado da cadeira, levou um soco na nuca e teve os sapatos, dinheiro, cordão, pulseira e relógio roubados. Dadinho, antes de se retirar, disse ao embriagado que vomitava deitado no chão: “Pode ficar com a cadeira!” gargalhou fino, estridente e rápido, e se retirou correndo pelas ruas do centro.” (p.188)
E, quanto mais a exclusão social aperta, mais a violência e a solidão se apoderam do excluído e cercam o excludente. Cada um deles tem de se defender do outro para manter sua forma de poder; é assim que Cabeleira, Bené, Zé Pequeno e Manoel Galinha se isolam em seus trajetos e almejam sempre o momento em que terão uma vida normal, isto é, uma vida em que possam gozar dos mesmos direitos dos que possuem um bom nascimento: dinheiro, respeito e dignidade. Para isso seria preciso que o mundo fosse outro, que a ordem das coisas fosse outra, que eles não tivessem de sentir medo e fazer-se temer.
Enquanto há uma possibilidade maior de sociabilização, ainda nos anos setenta, e as diferenças de classes não são tão presentes em todas as instâncias, bandidos como Salgueirinho e Cabeleira cruzam a marginalidade com um sentido de malandragem em que uma ética se encontra presente:
“Quis ser como Salgueirinho, que só roubava longe da área, sem atrair os samangos, delatores e inimigos.” (p.69)
“Segundo as suas normas, aplicar um-sete-um na área onde moravam era falta grave. Motivo de desconsideração e até de morte, conforme o caso.” (p.72)
Já nos anos oitenta, com a crescente sofisticação tecnológica e forte estímulo ao consumo, ocorre um desagregamento da comunidade e fortalecimento do egoísmo e da individualidade de seus participantes, degringolando no abandono da antiga ética e na ascensão da crueldade entre os traficantes, agora donos da favela.
Para escapar da malhas da crueldade e do ambiente feroz de violência, resta uma única alternativa a todos: curvar os joelhos para o amor. É o amor, sina a qual ninguém pode fugir, que alimenta um vestígio de esperança e faz brotar a idéia de redenção no coração de cada uma desses anti-heróis. Só a partir da rejeição do amor da namorada de Manoel Galinha e da morte de Bené que Zé Pequeno deflagra a guerra em Cidade de Deus. E nem esse movimento de busca da moeda da felicidade salvaguarda as personagens do ódio canino de seus desafetos, sendo muita das vezes, como nas tragédia gregas, o passaporte para o destino final de todos nós.
Paulo Lins demonstrou fôlego de bom nadador em seu Cidade de Deus, elaborando uma obra com refinada unidade, coerência e complexidade. Que os leitores saibam apreciar o seu notável trabalho.