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É bom lembrar que todas as religiões contêm noventa por cento de fraude e são responsáveis por numerosos males sociais. Mesmo assim, dentro da geração beat verifica-se a existência de três tendências:
1. Busca da visão e da iluminação. Esse resultado é obtido geralmente pelo uso sistemático de drogas. A marijuana é um recurso de consumo diário e o peiote é o verdadeiro estimulante da percepção. Tanto um como o outro são complementados às vezes por práticas iogues, álcool ou similares. Embora uma boa parte de auto-consciência possa ser obtida pelo uso inteligente das drogas, o hábito de “drogar-se” não conduz a nada porque falta exatamente inteligência, vontade e compreensão. Uma sensação puramente pessoal, obtida às custas de um tóxico, não beneficia ninguém.
2. Amor, respeito à vida, abandono, Whitman, pacifismo, anarquismo, etc. Todas essas tendências são provenientes de inúmeras tradições, entre as quais a religião Quakers, o Budismo Shinshu, o Sufismo, etc. Todas são frutos de um coração generoso e apaixonado. Em suas manifestações mais dignas, essas tendências levaram algumas pessoas a condenarem ativamente as guerras, fundar comunidades e amarem-se umas às outras. Em parte, elas também são responsáveis pela mística dos “anjos”, a glorificação das viagens a pé e das caronas, bem como por uma forma de entusiasmo inconsciente. Se respeitam a vida, não respeitam a sabedoria da impassibilidade e a morte. E essa é uma de suas falhas.
3. Disciplina, estética e tradição. Essas tendências são bem anteriores ao surgimento oficial da geração beat. Diferenciam-se da doutrina “Tudo é um” na medida em que seus praticantes estabeleceram uma religião tradicional, tentaram incorporar o sentimento de sua arte e de sua história, e praticam qualquer ascese que for necessária. Uma pessoa pode tornar-se um dançarino aimu ou um xamã yurok, ou até mesmo um monge trapista, se ela realmente o deseja. O que falta nesse tópico, é o que os dois primeiros possuem, ou seja, uma existência perfeitamente adaptada à realidade do mundo e percepções realmente verdadeiras do inconsciente.
A conclusão prosaica é a seguinte: se uma pessoa não for capaz de compreender todos esses aspectos – contemplação (que não seja pelo uso de drogas), moralidade (que para mim significa protesto social) e sabedoria – ela não estará à altura de levar uma autêntica vida beat. Mesmo assim, poderá ir bastante longe nessa direção, o que é preferível que ficar rodando pelas salas de aula ou escrever tratados sobre o budismo e a felicidade das massas, como os caretas fazem com tanto sucesso.
É o budista da poesia norte-americana, personagem principal do luminoso Dharma Bums, de Kerouac, onde aparece escalando montanhas e realizando com fervor a cerimônia do chá, sob o nome de Japhy Ryder. Sua autobiografia:
“Nasci em 1930, em San Francisco, e cresci numa fazenda ao norte de Seattle, no estado de Washington. Desde uma idade muita tenra me descobri tomado por um fascínio indescritível diante do mundo natural; uma atitude de gratidão e maravilhamento. Ganhei uma bolsa do Reed College e me formei em mitologia em 1951. Fiz curso de linguística na Universidade de Indiana e depois vagabundei bastante, trabalhando como lenhador e guarda florestal, atividade que alternava com estudos de chinês clássico em Berkeley até 1956, quando fui para o Japão receber o treino formal Zen. Estive no Japão de maio de 1956 a agosto de 1957; depois trabalhei num petroleiro até abril de 1958, visitando os portos do Mediterrâneo e do Pacífico; fiquei em San Francisco até janeiro de 1959 e então retornei ao Japão. Regressei para o ocidente em 1967, casado com uma japonesa (Masxa) e com um filho (Kai) , para me instalar no vale de Nevada City e levar uma vida solitária com minha família.”
Considerado pelos críticos como, “magnífico artesão da palavra”,os poemas de Snyder estão impregnados de natureza, de magia, de dança e ecologia tribal dos índios norte-americanos.
De Como nos Velhos Tempos, de Gary Snyder
Tradução de Ciro Barroso.
L&PM editores.
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