Sobre o meu nome se poderão ouvir as melhores e as piores coisas. Jamais acreditem. Uns costumam dizer “Não presta”. Outros -“É uma boa pessoa”. Ainda há aqueles que dizem que escrevo bem. Estejam tranquilos, que esses três tipos são inofensivos como passarinhos. Apenas boa gente que fala demais. Agora, há um grupo que se expressa -” É um belo rapaz”. Quanto a esses eu lhes recomendo à boca pequena – “Muito cuidado!”. Ali estão os que fazem elogio tontamente e traição cruamente.
Para começo direi que temo o julgamento desta conversa deste aqui. Provavelmente, dirão que estou fazendo pose e armando uma presepada bruta para entretê-Ios e, o meu livro aparecido, encontre nas prosas moles aqui expostas, um veículo que os levará às livrarias.
Seria porco da parte deste aqui. E em literatura, ainda jogo o jogo limpo, tenho me aguentado na posição que adotei. Escrever é um ato de coragem e humildade. Não estou, pois, para truques.
Malagueta, Perus e Bacanaço é a minha coletânea de contos à qual a União Brasileira de Escritores deu o prêmio Fábio Prado, a Câmara Brasileira do Livro deu dois prêmios Jabutis (Revelação de Autor e Melhor Livro de Contos do Ano) e que o editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, publica este ano. Livro de estréia. Estava pronto em 12 de agosto de 1960, data em que veio um incêndio, queimou minha casa, lambeu tudo. Fiquei sem roupas, sem casa, sem livro.
Naquela casa, naquele meu quarto, eu trazia guardadas as coisas que me acompanhavam desde os cinco anos de idade. Eu não escrevia em outro lugar que não fosse o meu quarto porque fora dele eu não sabia escrever. A vida foi me dando porradas, me dando, até que aprendi a escrever em qualquer canto. Sem precisar de casa ou de quarto. Qualquer boteco é lugar para escrever quando se carrega a gana de transmitir. Gana é um fato sério que dá convicção. Poderia falar de todos os contos do livro. Citar que quase todos ganharam prêmios aqui, ali, além. Cada um tem sua história. Prefiro a de um.
Malagueta, Perus e Bacanaço é o último do livro e conta as andanças aluadas e cinzentas de três vagabundos, malandros, viradores numa noite paulistana. Quebrados, quebradinhos, sem eira nem beira, partem da Lapa. Há esperança. Arrumariam dinheiro, virariam a cidade. Andam, jogam, caem, levantam, reviram subúrbios, de novo tropicam, ganham, perdem, desforram. Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros, Lapa. Como terminam é como terminam. Murchos, sonados, pedindo três cafés fiados.
No trajeto comprido da noite e da madrugada eu os sofro e sofro a cidade. Vou contando nas quarenta páginas, conduzindo-os e explicando-os nas marchas em que vão. Porque vão em muitos ritmos de marcha. O que se passa com eles e dentro deles, o que se passa na cidade é o que este aqui quis contar.
Um velho, um rapazola, um rufião maduro são os respectivos Malagueta, Perus e Bacanaço. Uni-los e conluiá-los foi armar a façanha diária de muitos malandros dos muitos lados de São Paulo. Não é uma aventura especial, épica, o que enganosamente poderá aparentar. É o cotidiano da malandragem, nas maiores possibilidades que tive. Transitam em suas páginas a malandragem cinzenta de sinuca e suas decorrências. Mexem-se proxenetas, prostitutas, surrupiadores de carteira, carros de polícia, vadios, homossexuais, donos de botecos, operários, esmoleiros. ..Ambientes do joguinho. Até Carne Frita aparece, espécie de rei, maior taco do Brasil, figura verídica. Utilizo linguagem deles, jeitos, códigos, vou até a sintaxe malandra. Gíria. Gíria é bom para espíritos intensos, de vulcânica agitação e sublime vibração. Devo advertir que os fiz amorosamente e certos exageros há, é claro. Vejam, a dedicatória é para Carne Frita e a epígrafe é uma definição de Bola Livre, um vagabundo da Lapa de Baixo.
Tudo o que tenho feito em minha vida apenas tem me dado noções da minha precariedade. Um sentimento de falência, certo nojo pela condição dos homens e até ternura, às vezes; quase sempre – pena.
Mesmo nas etapas das quais saio vitorioso, nunca se afasta o gosto da frustração. Competir para mim é imoral, portanto: profissional, amorosa, familiarmente, meus acontecimentos não têm me preenchido nada. De transitoriedade e de insuficiência têm-me sido essas coisas do amor, da profissão e da família. A verdade é que não consigo comunicação. Nem o exterior comigo. Eu não aprendo a aceitar nada pela metade. E é este sentimento de culpa que me fica.
Agarrei-me à literatura aos onze anos. Neste amor já houve longos espaços de paixão maluca e houve esmorecimentos explicáveis, que eu, com estes meus arrebatamentos só apronto confusão. E levo tanta aflição por dentro.
Mas é o amor de sempre. E vou caprichando que, afinal, a literatura é a minha única terapêutica. A alquimia literária me esgota. Qualquer página me custa, a mim, que para outras redações tenho facilidade. Escrever é outra dimensão e é única comunicação de verdade com o mundo porque falando com pessoas, eu não me consigo transmitir. E quando tento…
Para reescrever Malagueta, Perus e Bacanaço, empreguei quase dois anos, que não tinha quarto e quase nem casa. Rodei pensões, bibliotecas, apartamentos de amigos, quartos mesquinhos de hotel; enquanto, durante o dia, trabalhava em escritórios de mil coisas para remendar dívidas e empenhos familiares. Aproveitei intervalos, sacrifiquei domingos, mandei amigos andarem, desertei de muitas coisas. Gramei sobre o papel, o livro veio vindo, vindo, veio, está aí.
Mas tenho esperanças. Tenho levado castigos mas tenho esperanças. Um malandro, meu amigo, dizia: “A gente cai, a gente levanta, na queda já se aprendeu. Pode ser que ali na esquina a gente dê uma sorte”. Parece-me que tenho uma das mais puras bossas para a malandragem, entre as muitas que vi. Mas nunca vi ninguém com tanta vocação de otário. Logo, minha vida é um trapézio. Mas a minha responsabilidade é grande – eu não tenho rede que amenize as quedas. Para mim, certas fugas não valem. Os porres resolvem o problema do dono do bar. E certos vícios, com autenticidade, são até virtude. Não declinarei número de sapato, nem de colarinho, peso e derivantes porque realmente não sei. Não quero detalhar minhas amizades malandras, que isto não é novela. E tem mais duas propriedades – não sou besta e nem delator. Mas foi lá. Nas beiradas das estações, nos salões do joguinho, nos goles dos botecos, que vi Malagueta, Perus e Bacanaço.
Prefácio escrito por João Antônio, São Paulo, Boca do Lixo, Janeiro de 1963.
Extraído de Malagueta, perus e Bacanaço
Editora Civilização Brasileira.