por João António
Extraído de Casa de Loucos
Civilização Brasileira,1976
Tem certidão de nascimento e implantação datada de fevereiro de 1965. A paternidade principal é atribuída à COHAB. Em janeiro de 1966 cumpria papel importante ao abrigar 1200 famílias de favelados, vítimas das enchentes mais famosas e medonhas que o Rio de Janeiro conheceu nos dez últimos anos. Inundações, desabamentos, desastres, mortes tomando vários bairros cariocas, isolando e flagelando em dimensões de catástrofe. As 106 favelas, claro, foram os ajuntamentos humanos atingidos mais de perto. No começo, o povo desabrigado foi para o Maracanãzinho. Depois, transferido para Cidade de Deus.
Em 6.7.1968 os jornais gritavam que mais de cinquenta por cento da gente que vivia em Cidade de Deus eram invasores e teriam de abandonar casas, apartamentos e triagens para dar lugar , hora e vez aos proprietários legítimos. No dia 13 daquele mês, Augusto Vilas-Boas, então o Presidente da COHAB, prometia encontrar ,jeito para a invasão. O jeito foi com modo pessoal. No dia 17, a COHAB colocava uma tropa de choque da Polícia Militar na Cidade de Deus, para evitar a invasão de casas por ex-favelados. Um mês e um dia depois, a mesma COHAB, em cumprimento a despejo judicial, levou a operação às últimas consequências. A ação rápida não encontrou resistência dos ex-favelados. Todos transferidos para o Albergue João 23.
No mês de dezembro de 1968, o engenheiro Raul Marques de Azevedo, diretor-técnico da COHAB. fazia um elogio na Revista de Engenharia do Estado da Guanabara. Era um sucinto, inspirado e talvez desinteressante ( pela linguagem) artigo sobre Cidade de Deus. Apesar da cantilena ufanista, o publicado contém mapas e números. Que se aproveita.
No dia 2 de março de 1969, os moradores chiavam objetivamente. Pediam ônibus diretos para a Zona Sul, por causa dos empregos. Afinal, a maioria daquele povo continuava a arranjar dinheiro em Copacabana durante o dia, e usava as habitações apertadas como um esconderijo, à noite. Um canto em que encostar os ossos, entre cinco ou seis filhos. Gente pobre é isso.
Em 22 de maio de 69, dizia uma senhora, dona Lúcia: “um horror, não tem condução, falta água, é longe à beça, o esgoto está sempre entupido e com mau cheiro. Médico só até cinco horas. Cidade de Deus, nada. Do diabo, isto sim”. Moradora de cidade de Deus. Em junho daquele ano, dia 15, os jornais voltavam: o conjunto habitacional tinha capim, mau cheiro e poeira; esperava melhorias urbanísticas.
No dia 3 de dezembro de 1969, um sociólogo “que evitadizer seu nome porque o problema é delicado”, lavrava : “É. Pode ser que essas comunidades venham a se transformar em guetos. Principalmente a Cidade de Deus, que é a mais isolada da comunidade central.”
Chegou o ano de 1970 e, no dia 25 de março, o Governador Negrão de Lima resolveu dar uma lição de fé ao povo do conjunto habitacional.Lançou nomes bíblicos às avenidas, ruas, travessas e praças da Cidade de Deus, localizada na XVI Região Administrativa, de Jacarepaguá. Profetas judaicos, maiores e menores, acompanhados de personagens bíblicos e de maravilhas, tipos, forças e obras de Deus começaram a aparecer substituindo os números frios. Assim, a Avenida 1 passou a se chamar Ezequiel; a Avenida 2 transformou-se em José de Arimatéia; a Rua 1 ganhou o nome de Salomão ; a Rua 2 chamou-se Daniel; a Rua 3 passou a ser Moisés; a Rua 5, Ezequias ; 6, Elias ; 7, Josafá ; 8, dos Milagres; 9, Salatiel ; 10, Josias; 11, Jessé; a Rua 47 chamou-se Zebulom; a 51, Tarso; a 54, Samaria ; a Rua 70 foi chamada Judá e a Rua 71 virou Amon. O mesmo com travessas e praças. A Travessa 118, por exemplo, se chamou Murta; a 119, Pecode; a 121, Purim e a Travessa 125 ganhou 0 nome de Mênfis.
Mas no dia 3 de maio do mesmo ano, os jornais incomodavam de novo. Cidade de Deus continuava com uma só linha direta de ônibus para seu povo. Era a 266, Largo de São Francisco – Cidade de Deus. Em 14/07/1970 afirmou-se que os moradores de Cidade de Deus desprezavam a boa alimentação para ter geladeira. Nessa matéria não se escreve uma única linha sobre a temperatura da região, uma das mais quentes do Rio.
No mesmo setembro de 1970, os jornais gritavam que os moradores tinham um mundo de problemas e, precisamente em 17/07/1970, publicou-se que uma favela crescia, há já um ano, à margem do Rio Fundo. Com barracos enfileirados à margem direita do rio, assinalavam uma favela em formação, na entrada da Cidade de Deus. Enquanto isso, esqueletos de bambu anunciavam a chegada de mais gentes para as beiradas do rio. Uma ameaça grave, sem dúvida.
Estudantes do Brasil, cumprindo nova etapa do Projeto Rondon, fizeram uma pesquisa sócio-econômica da Operação Grande Rio e despejaram para a imprensa a informação de 18/07/70: Cidade de Deus tinha apenas 3 (três) crianças subalimentadas.
Mas no dia 27 daquele mês, um jornal mau comportado malhava. Cidade de Deus não estava a merecer sequer o nome e havia virado um inferno com 2.500 pessoas no caldeirão.Um paraíso dos urubus.
Com a palavra o Sr. Vítor Pinheiro, Secretário dos Serviços Sociais, em 31 daquele julho de 1970: o Estado iria usar as pesquisas sócio-econômicas levantadas pelo Projeto Rondon para melhorar a Cidade de Deus.