Aos amantes uma outra vida é concedida
Hölderlin
Despertemos neste domingo de tentáculos solares que ameaçam tomar conta do resto da semana; com a persiana baixa, o quarto é penumbra dourada, entardecer constante seja qual for a hora do dia. viajantes imóveis, olhamos o filete de fumaça do cigarro plantado no centro do quarto, seu movimento vagaroso aparentando a vida dos sargaços, aguapés, labirintos, e demais símbolos da memória. Como plantas aquáticas à deriva, viemos parar aqui, fugitivos do excessivo mundo, prisioneiros voluntários deste mínimo espaço. A cada nova carícia, cada perda de mãos nos meandros do corpo do outro, transformamo-nos em personagens do mesmo sonho: o mundo finalmente reduzido à dimensão da colcha jogada sobre a cama, à geometria harmoniosa dos lençóis amassados e travesseiros náufragos. Nossa nudez é um desafio ao tempo: todas as horas formas do sempre, multiplicadas pelo mesmo gesto de acariciar-se. Possuídos da mesma calma dos rios que deságuam em seu pântano, e vão reconhecendo aos poucos suas novas margens de contornos imprecisos, suas raízes e troncos submersos, falamos pouco, pois tudo tem significado, até mesmo os gestos mais simples, acender um cigarro, tomar café. O despertar é reconhecimento e retomada dos mesmos gestos rituais, mãos construindo novos labirintos de sensação do macio e do áspero da pele, navegação de um para o outro para depois voltar a afundar nos lençóis mornos. Não fazemos questão de ser muito mais do que isto, um arquipélago de superfícies do corpo e sensações da pele. E esta umidade que só o amor consegue criar, impregnando o ar e recobrindo a parede. E os cheiros do corpo, o que dizer deles, desta aura de suor, esperma, perfume, hálito, secreção e mistério, que carregamos conosco e que nos dá a certeza de existir e estarmos vivos. Identidade com o mar, conhecimento das vozes do entardecer, memória dos passos sendo acolhidos pela areia da praia. Somos signos da terra, nos acompanha algo de chão apenas revolvido, pequenos lagos com suas plantas, florestas que ainda existem. Como tudo isto é diferente do resto, e nos torna irreversíveis. Todos os poemas o mesmo poema. Libertamo-nos, deixamos de ser prisioneiros do horóscopo. Recolocamos o mundo em seu devido lugar, após tomar uma poção mágica. Cumplicidade de samurais que se preparam para a luta em uma prontidão de espadas, sabedoria daqueles que sabem mover-se na escuridão. A percepção desentravada nesta planície de penumbra dourada de entardecer que se reflete na pele. Não importa onde você esteja agora, e quão distante. Não existem saudades, porém sóis circulando em nossas veias. Nenhuma sensação de perda ou de vazio, porém de acréscimo, alguma coisa que ganhamos nesta complicada errância pelo planeta em busca da nossa identidade. E também esta névoa familiar que pousa ao meu lado na semilucidez da vigília, feita de sensações de corpo, presenças, toques da pele, pulsações, tesão, este confuso novelo de memórias, de vozes e de cheiros, que aos poucos vai se desatando e se transformando em poema.