“[…] nesta época, quando qualquer momento pode ser o último para muitos de nós, é irritante e absurdamente triste que ainda tenhamos entre nós as pessoas pequenas, amargas, os caçadores de bruxas e os que pregam contra a realidade”
Uma leitura breve na obra do poeta e escritor alemão Charles Bukowski (1920 – 1994) já basta para sugerir que ele estava longe de ser um representante do que se cunhou chamar de “politicamente correto”. Bukowski empregava à sua prosa e poesia um tom coloquial, por vezes obsceno, e tinha como principais personagens os párias da sociedade – mendigos, bêbados, prostitutas, bandidos, trabalhadores braçais e ele próprio. A solidão, as bebedeiras, os relacionamentos tempestuosos, a falta de dinheiro, as desventuras em diversos empregos e a ascensão da marginalidade à fama como escritor são uma constante na obra de Bukowski.
Em 1985, após a reclamação de um leitor, a Biblioteca Pública de Nijimegen retirou de suas prateleiras o livro de contos de Bukowski intitulado Fabulário Geral do Delírio Cotidiano (em inglês, Tales of Ordinary Madness), sob a declaração de a obra ser “sádica, frequentemente fascista e discriminatória contra certos grupos (incluindo homossexuais)”.
Ao ser perguntado pelo jornalista Hans van der Broek sobre sua opinião a respeito da censura do livro, Bukowski escreveu esta carta, que atualmente encontra-se pendurada na parede de uma loja de livros itinerante chamada Open Ditch Bus, que roda há mais de 20 anos na cidade de Eindhoven, Holanda. Segue abaixo a resposta de Bukowski, que critica a prática da censura e defende uma visão não-fantasiosa da realidade por parte do escritor e do público em geral.
“22-07-85
Caro Hans van der Broek:
Obrigado pela sua carta me contando que um de meus livros foi tirado da livraria de Nijimegen. E que ele é acusado de discriminação contra negros, homossexuais e mulheres. E que ele é sádico por causa do sadismo.
As coisas cuja discriminação eu temo são humor e verdade.
Se eu escrevo coisas ruins sobre negros, homossexuais e mulheres é porque aqueles que conheci eram assim. Há muitos ‘maus’ – maus cachorros, má censura; há até ‘maus’ homens brancos. Apenas quando você escreve sobre “maus” homens brancos eles não reclamam a respeito. E eu preciso dizer que há ‘bons’ negros, ‘bons’ homossexuais e ‘boas’ mulheres?
Em meu trabalho, como escritor, eu apenas fotografo, em palavras, o que vejo. Se eu escrevo sobre ‘sadismo’ é porque ele existe, eu não o inventei, e se algo hediondo ocorre em meu trabalho é porque tais coisas acontecem em nossas vidas. Não estou do lado do mal, uma vez que algo como o mal existe em abundância. Em minha escrita eu nem sempre concordo com o que acontece, muito menos me arrasto na lama puramente por sua causa. Também, é curioso que as pessoas que fazem críticas a meu trabalho parecem ignorar seus trechos que falam de alegria e amor e esperança, e tais trechos existem. Meus dias, meus anos, minha vida tem visto altos e baixos, luz e escuridão. Se eu escrevesse só e continuamente sobre a ‘luz’ e nunca mencionasse os outros, então como artista eu seria um mentiroso.
A censura é a ferramenta daqueles que precisam esconder realidades de si próprios e dos outros. Seu medo é apenas sua incapacidade de encarar o que é real, e eu não posso descarregar ódio nenhum sobre eles. Eu apenas sinto essa tristeza aterradora. Em algum lugar, em sua criação, eles foram protegidos contra os fatos totais de nossa existência. Eles foram ensinados a olhar de apenas uma maneira, quando muitas maneiras existem.
Eu não fico alarmado que um de meus livros tenha sido caçado e desalojado das prateleiras de uma biblioteca local. De certa forma, estou honrado por ter escrito algo que tenha acordado essas pessoas de suas profundezas inertes. Mas me machuca, sim, quando o livro de alguma outra pessoa é censurado, pois aquele livro geralmente é um grande livro e há poucos como aquele, e através dos tempos aquele tipo de livro frequentemente se tornou um clássico, e o que uma vez foi chamado de chocante e imoral é agora uma leitura obrigatória em muitas de nossas universidades.
Não estou dizendo que meu livro seja um desses, mas estou dizendo que, em nosso tempo, nesta época, quando qualquer momento pode ser o último para muitos de nós, é irritante e absurdamente triste que ainda tenhamos entre nós as pessoas pequenas, amargas, os caçadores de bruxas e os que pregam contra a realidade. Ainda assim, eles também estão conosco, eles são parte do todo, e se eu não escrevi sobre eles, eu deveria, talvez o tenha feito aqui, e isso basta.
Que todos nós fiquemos melhores juntos,
seu,
(Assinatura)
Charles Bukowski”