por
Robson Braga
Pôsteres, cartazes, fotos, filmes: a videosfera converteu um
iconoclasta em ícone. O homem das sombras, refratário às câmeras
e aos microfones, tornou-se visual, exposto por toda parte.
(Regis Debray, Folha de São Paulo, agosto de 1998)
Che
Guevara, o jovem médico argentino que protagonizou um dos acontecimentos
históricos e políticos mais importantes da Segunda metade do século
XX, a revolução cubana, na qualidade de líder político e revolucionário,
é também o centro de um fenômeno que ultrapassa os limites formais
da política e da história: Che tornou-se um fenômeno midiático.
Em
parte, isso se deve a uma confluência peculiar entre uma trajetória
de vida individual extraordinária e um lapso particular da história
do século XX. Guevara foi um representante típico de um fenômeno generacional
abrangente, repleto de implicações políticas e comportamentais, individuais
e coletivas, ocorrido na esteira do boom econômico do capitalismo
mundial do segundo pós-guerra.
Num
contexto social apropriado, deu-se o surgimento de um conjunto de
novos sujeitos sociais identificados pela faixa etária e pelos níveis
cultural e sócio-econômico em que estavam situados. Confrontados com
as barreiras impostas pela cultura tradicional e com os antagonismos
sociais de uma sociedade de consumo, uma geração de indivíduos jovens
e autoconfiantes, imbuídos do mais alto espírito voluntarista e de
onipotência individual, irrompeu na cena pública afrontando as normas
de conduta e os valores tradicionais, tidos por eles como anacrônicos.
Não
raro, esses jovens aliaram à contestação das barreiras interpostas
ao exercício da liberdade individual a crítica e o confrontamento
contra o capitalismo vigente. Especialmente a América Latina, onde
as contradições do capitalismo apresentavam-se com maior evidência,
os jovens ativistas tendiam ao enfrentamento aberto com as forças
do Estado, principalmente quando este se utilizava de expedientes
autoritários para dar sustentação à ordem econômica a que estava vinculado.
Em
1959, um grupo de jovens militantes, liderados por um advogado de
32 anos, Fidel Castro, ocupa o poder político em Cuba, após pouco
mais de dois anos de atividade guerrilheira no interior do país. Ao
lado de Fidel e de outros líderes, ocupando posição de destaque na
guerrilha e no governo revolucionário que a sucedeu, está Ernesto
"Che" Guevara, um jovem médico recém formado, primogênito de uma família
de classe média ilustrada da Argentina, e que se juntara aos revolucionários
cubanos no México, depois de um périplo de aventuras por diversos
países do continente.
A
revolução cubana - Che Guevara à frente, com seus traços fisionômicos
remotamente europeus sugerindo uma inspiração internacional dos valores
que personificava, coroado como herói por seus feitos militares durante
a revolução (embora a coroa em questão fosse uma boina adornada com
uma estrela prateada, distintivo de sua posição como comandante-em-chefe
das forças revolucionárias e que mais tarde se converteriam no ícone
fotográfico mais familiar deste século, imortalizado em fotografias
que percorreriam o mundo)-era um feito político que surgia para o
mundo como exemplo afirmativo do potencial do "poder jovem". Provavelmente
não passou despercebida a semelhança visual entre os jovens de barbas
hirsutas que desceram a Sierra Maestra e os desgrenhados hippies americanos
ou ingleses, malgrado a diferença entre os que propugnavam uma transformação
radical das estruturas da sociedade e os que limitavam-se à transgressão
antinômica das normas e dos valores vigentes com vistas ao útópico
exercício da liberdade individual plena dentro da ordem capitalista
intocada. De qualquer modo, as inclinações cosmopolitas, a mobilidade
inquieta e o arrebatamento em favor de novos modos de sentir e viver
são atributos que colocam lado a lado o Che e os mais significativos
representantes da geração beat americana, malgrado a diferença quanto
ao grau de engajamento político.
Che
Guevara, um estrangeiro que participou voluntariamente de uma epopéia
revolucionária num país onde nunca houvera pisado antes, dava corpo
e forma à onipotência individual e a ivulnerabilidade de que muitos
jovens de sua geração e mesmo das subsequentes se achavam possuidores.
Quando abandonou o poder e a glória que havia conquistado em Cuba
para perseguir outros feitos heróicos na África e, novamente, na América
Latina, Che materializava o coro estridente dos jovens que gritavam
"We want the world, and we want it now". Quando foi capturado
e morto por militares bolivianos e agentes da CIA, consolidou-se como
mártir.
Sim,
o mártir estava criado, o herói tinha o nome e o enredo de sua vida
cada vez mais conhecido. Mas, ousamos sugerir, o legado mítico de
Che Guevara não teria a mesma dimensão não fosse pelo vasto registro
iconográfico que circula mundialmente, em fotografias, há pelo menos
quarenta anos. A epígrafe que citamos no início deste texto não é
exata. Che nunca foi refratário às câmeras, a julgar pela profusão
de fotografias que cobrem a sua vida, da mais tenra infância ao desfecho
de sua execução. Biógrafos de Che tecem muitas vezes os seus textos
a partir de fotografias. As páginas destinadas às fotografias nessas
biografias são mais que as usuais ilustrações em livros dessa natureza.
O mais eminente dos biógrafos recentes de Che, o escritor mexicano
Jorge Castanheda, abre seu livro falando da importância que teve a
fotografia do Che morto (providenciada por seus algozes como prova
de que tinham logrado o seu intento) para a constituição do mito,
pela semelhança analógica com a figura do Cristo morto. No poema intitulado
Elegia Che Guevara,
Allen Ginsberg, o papa beat da poesia americana, utiliza abundantemente
as sugestões imagéticas inspiradas nas fotos de Che. Tudo isso comprova
apenas que foram as fotos, mais do que qualquer outra forma de registro,
que instituíram a imagem que o mundo tem do revolucionário argentino.
Em
1997, o trigésimo aniversário da morte do revolucionário argentino
foi marcado por uma nova confluência de olhares e atenções em torno
do Che, ocasionado em parte pelo oportuno acontecimento que foi a
identificação dos seus restos mortais encontrados numa vala comum
no interior da Bolívia. O estrépito editorial e o espaço franqueado
pelo assunto na mídia, longe de ser um acontecimento fortuito, decorreu
da permanência suigeneres de uma simbologia associada ao Che no imaginário
social contemporâneo. Trata-se de um fenômeno multifacetado e abrangente,
cujo campo de influência se estende do plano político (da intervenção
coletiva orientada pela presença residual dos grandes projetos de
transformação da sociedade e da história) ao plano existencial (da
busca do sentido individual diante das ambivalências inerentes à condição
de estar no mundo no contexto peculiar do nosso fin de siecle).
A
surpreendente vitalidade do Che no imaginário coletivo contemporâneo
se deve tanto ao fato de sua trajetória de vida estar relacionada
à busca de um ideal utópico-libertário característico do nosso passado
recente e que ainda reverbera na consciência contemporânea, quanto
ao fato de seu legado se fazer presente entre nós através de uma forma
peculiar de fazer circular conhecimento, informação e valores: a fotografia.