Tradução: Rafael Machado Simoes
O autor deste artigo foi um criminoso por vinte e cinco anos e cumpriu várias penas de prisão; as palavras que diz sobre o estado de espírito do criminoso e sobre os efeitos do método de combate ao crime atualmente utilizado pela sociedade são, portanto, baseados em experiências pessoais – os editores.
I
“Há muita lei pendurada na forca”. Este era a sagrada escritura dos Vigilantes da Califórnia [1] quando decidiram se organizar para varrer a onda de crimes de 1849. Em nome da lei e da ordem, decidiu-se tomar um atalho, executar alguns assassinos e ladrões de cavalo, para tornar a cidade de São Francisco um local mais atraente para os negócios. Havia as pessoas boas da época, nobres senhores dedicados a uma igualmente nobre missão; mas assim como os nobres senhores tornados reformadores, com o passar dos anos, embebedaram-se de sangue e poder. Enquanto a forca foi destinada a ladrões de cavalos, a população aceitou, mas quando os reformadores sucumbiram à tentação inevitável de enforcar rivais de negócio e inimigos políticos, esta mesma população mostrou seu desprezo.
Trata-se de um mundo de carros de boi e vagões cobertos por lona, e hoje vivemos um mundo de automóveis e aviões. A maioria das coisas mudou ao longo dos anos, mas oitenta anos não fizeram muita diferença nos métodos utilizados pelas pessoas “boas” para lidar com as pessoas “más”. No essencial, a onda de crime de 1929 está sendo combatida com a atitude mental dos Vigilantes.
“Há muita lei na ponta de um cassetete”. Esse comentário é típico de um vigilante, mas foi dito pelo atual comissário de polícia de Nova York na abertura da campanha de limpeza com a qual iniciou seu mandato. O único resultado aparente até agora são pancadas e tiros indiscriminadamente disparados pela polícia seguidos de um proporcional aumento no número de assassinatos e crimes de violência.
Vivemos tempos violentos. Todos nós concordamos com isso. A questão é saber quem é o responsável? São as pessoas más que tornam más as pessoas boas, ou são as pessoas boas que tornam más as pessoas más? Ou é meio a meio?
Do meu ponto de vista de observador, me parece que a sociedade tenta tirar a gangue do gangster, tirar a pancadaria do valentão e tirar tiroteio do atirador, sem sequer se perguntar se com isso, não estão simplesmente incentivando a violência.
Os certos na imprensa e nos púlpitos de toda a América estão escrevendo e pregando sobre os errados. Comissões de criminalidade e indivíduos graúdos e miúdos, do Juiz Presidente do Supremo Tribunal aos pequenos reformadores das menores cidades, estão examinando e recomendando e resolvendo e sei lá mais o quê. Os legisladores estão legislando, e a polícia está disparando e baixando o cassete. Todos estão pregando e praticando mais violência como uma cura para o crime.
Existe alguma demonstração em qualquer país, em qualquer época, que nos leve a acreditar no sucesso desse método? Não sou capaz de encontrá-la. E não me coloco aqui como uma autoridade em crime e criminosos. Meu testemunho é o de um espectador – um espectador culpado, se preferires, pois enfrentei e sobrevivi a quatro penitenciárias e a numerosas cadeias municipais… Minha experiência pessoal não é que importa. Eu sou útil apenas como uma amostra de caso; mas caso as leis que as pessoas certas estão aprovando atualmente tivessem entrado em vigor há quinze anos, eu não teria tido a oportunidade de abandonar o roubo e começado a trabalhar. Meu destino teria sido a forca, a cadeira elétrica ou seria vítima de um tiro da polícia. Se escapasse, estaria cumprindo prisão perpétua em alguma prisão como Dannemora ou Charlestown, cuspindo contra uma parede caiada até estourar os pulmões, como os demais “perpétuos” de vida, ensinando os jovens infratores a doutrina de “atirar sempre e atirar primeiro”.
Além de ser um cara errado mesmo, tive a oportunidade de conhecer na intimidade, dentro e fora da prisão, quase cinco mil pessoas erradas. Isto pode parecer muita gente, mas na cadeia, dispõe-se de tempo suficiente para o convívio social. Essas cinco mil pessoas constituem uma amostra do submundo na qual fervilha a onda de crimes. Incluem desde pequenos ladrões de capachos em que se lê “Welcome” aos patrícios da prisão, os ladrões de banco. O ladrão de capachos era para mim tão interessante quanto o ladrão de banco. Meu interesse não está no que fizeram, mas sim em porque fizeram. Alguns eram casos mentais, patológicos – “mentes-tortas”, na linguagem da prisão. Alguns estavam na prisão porque tinham muito pouco dinheiro, outros porque tinham muito. Alguns devido à ignorância, e outros devido ao excesso de educação. Alguns estavam lá porque escolheram profissões superlotadas, enquanto deveriam ter optado pelo comércio. Cachaça, ópio, ciúme, avareza; todos contribuíram com sua cota. Pouquíssimos estavam lá por pura perversidade – frutos de pura e simples obstinação.
A maioria era culpada das acusações, ou de infrações comuns, embora aqui e ali houvesse inocentes. Exceto aqueles condenados por crimes de paixão, nenhum tinha optado por uma carreira criminosa da noite para o dia. A maioria chegou por etapas lentas e graduais, o resultado da ação e reação. Uns estavam lá por uma rixa de infância com um policial de bairro, ou porque fizeram greve e perderam o emprego, ou porque a esposa ficou doente e os filhos estavam com fome.
Vamos assumir que a maioria deles eram os agressores iniciais. Agrediram a sociedade, e a sociedade, sem entender, agrediu-os de volta – e com juros. O círculo vicioso que leva de um presídio ao outro começa neste momento. Há uma relação entre todas essas histórias: o ódio da polícia, o desprezo pela lei e o medo e a desconfiança de toda a estrutura legal.
II
Meu caso é típico. Até a idade de quinze anos eu via o policial como um herói, uma pessoa para ser admirada, alguém com quem se podia contar e digno de confiança. Até que, numa noite, fui “pego, deitado, e botado lá dentro” por engano, por um policial. O tratamento que tive na prisão por parte desse policial e de seus oficiais congêneres fez essa ilusão em pedaços.
A cada novo contato posterior, durante vinte e cinco anos, essas impressões foram reforçadas, e levei boa parte da vida para entender que o policial é vítima da mesma máquina que produz o criminoso.
Tive a minha primeira lição de violência em minha primeira noite na prisão. Por vinte e cinco anos eu castiguei e fui castigado. Eu caçava porque era caçado. Eu não tinha consideração por ninguém, porque não esperava receber nenhuma consideração. Eu aprendi totalmente o jogo da violência com a polícia, com os tribunais e com as prisões. No final, passei a acreditar que eu somente poderia sobreviver pela violência, e sendo sempre o primeiro a agredir.
Eu conheço centenas de criminosos recuperados, mas nunca soube de um que tenha sido recuperado pelo porrete de um policial, por uma pena mais severa ou pela crueldade experimentada na prisão. O flagelo brutal experimentado numa prisão canadense e, anos depois, três dias de camisa de força assassina no chão de uma masmorra na Califórnia certamente em nada inclinaram meus pensamentos em direção à recuperação.
A camisa de força foi para o carcereiro o que a corda foi para o vigilante e o que o porrete é para o comissário de polícia de Nova Iorque – um atalho. A camisa de força teve um breve reinado e um fim rápido e trágico. Pude testemunhar que todos os submetidos a essa feroz punição foram tão irremediavelmente mutilados que se tornaram abandonados pelo resto de suas vidas, ou tiveram suas mentes tão perversamente distorcidas que se tornaram maníacos homicidas. Saíram da prisão como o pequeno alfaiate judeu cujas mãos estavam tão severamente calejadas que tornavam impossível a realização de qualquer trabalho honesto, exceto apanhar moedas de um centavo na esquina. No meu caso, esses flagelos tornaram-se mais venenoso e vingativo. Esta tentativa de manter a ordem “metendo o medo de Deus” goela abaixo dos criminosos falhou redondamente em todos esses sistemas. Culminou na mais sangrenta fuga da prisão na história dos Estados Unidos. Dos doze foragidos seis dos mais perigosos ainda estão à solta, com cordas penduradas em seus pescoços, e continuam cometendo assassinatos ousadíssimos para escaparem da mão do carrasco.
Quando saí da prisão, ainda sentindo os efeitos da camisa de força, jurei para mim mesmo que a partir daquele momento eu seria uma criatura da noite, jamais deixaria o sol brilhar sobre mim, jamais faria amigos novamente e jamais faria qualquer ato gentil. Os funcionários da prisão estavam seguros em suas prisões, e eu então direcionei minha vingança na sociedade. Em três meses eu estava de volta à prisão, acusado de roubo e de atirar em um cidadão que se recusou a ser “abordado”. Se esse cidadão não tivesse tido um bom médico e uma boa constituição física, eu não teria vivido para descobrir que a caneta é mais poderosa do que o pé de cabra ou do que a arma de fogo. Se a Lei Baumes estivesse aprovada em minha época, eu nunca teria chegado a essa conclusão, pois a lei retira do juiz todo o poder discricionário. Na quarta condenação o juiz é obrigado a sentenciar um réu à prisão perpétua, quer ele tenha atirado em um cidadão ou quer tenha simplesmente roubado um par de sapatos.
Nos últimos quinze anos em optei por me alimentar e me vestir por conta própria, ao invés de deixar os contribuintes fazê-lo por mim, porque no momento da minha vida em que eu menos merecia, recebi da Justiça confiança e clemência, o que me deu esperanças. O juiz que me deu um ano de prisão quando poderia ter me trancado para sempre e jogado a chave fora, deu a mim uma oportunidade maior do que eu jamais dei a mim mesmo. Ele interrompeu minha carreira de roubo com a mesma eficácia que a corda de uma forca interrompe uma vida. Ele me concedeu a vida, e eu não poderia sacaneá-lo, da mesma maneira com que eu não poderia sacanear o amigo que uma vez cortou as grades de uma janela de prisão para me dar a liberdade. A lealdade é a única virtude do submundo, e o juiz recorreu a ela. Ele me colocou numa situação em que eu fui obrigado a parar de roubar e a cair no compasso da sociedade.
Repito que jamais conheci um criminoso que se recuperasse da crueldade. A recuperação que alcancei deveu-se, inicialmente, à atitude do juiz que, ao me sentenciar a um ano de prisão ao invés de prisão perpétua, disse-me:
“Eu acredito que você tem caráter suficiente para construir uma nova vida. Vou lhe dar essa oportunidade.”
CONTINUA
[1] A vigilance committee was a group formed of private citizens to administer law and order where they considered governmental structures to be inadequate. The term is commonly associated with the frontier areas of the American West in the mid-19th century, where groups attacked cattle rustlers and gangs, and people at gold mining claims. As such groups operated outside the law, they sometimes took excessive actions and even sometimes killed innocent people without knowing it.[citation needed] In the years prior to the Civil War, some committees worked to free slaves and transport them to freedom.[1] WIKIPEDIA
Jack Black abandonou o crime para se tornar bibliotecário e defender a reforma prisional; em 1926 ele publicou You Can’t Win (Não dá para vencer), a narrativa de suas aventuras pessoais como ladrão, narrativa essa que se tornou favorita, e exerceu forte influência sobre o escritor William S. Burroughs (Black também escreveu Jamboree, uma peça mal recebida pela crítica, também baseada em experiências pessoais do autor). Durante a crise de 1929, Jack Black desapareceu, provavelmente afogou-se. Há, atualmente, uma página destinada ao autor no MySpace (https://myspace.com/saltchunkmary).