Um
dia as garotas - Carla, Tina e Magali - chegaram para o sarau
acompanhadas de um casal. Era contra as regras trazer gente nova
para o sarau, a não ser que se tratasse de grandes poetas. Mas
o mundo está cheio de grandes-poetas-imortais-não-publicados.
Carla fez as apresentações:
- Pessoal, esses são Hugo e Sílvia. Eles escrevem uns troços aí.
Hugo e Sílvia tinham sido instruídos pelas garotas a mostrarem
imediatamente o que tinham trazido para o sarau. Na mesinha de
centro eles depuseram duas garrafas de vodka, um tablete de maconha
do tamanho de um maço de cigarros e vários papelotes de pó. De
um jeito muito sério e cerimonial, Válter abriu um dos papelotes
e provou o conteúdo com a ponta da língua; passou o papelote para
o Mosca e ele fez o mesmo, e fizeram um gesto simultâneo de aprovação
com a cabeça. Com isso, Hugo e Sílvia estavam aceitos no grupo.
Hugo
era da espécie dos pleibas bonitinhos e bem arrumados, do tipo
que se perfuma e usa uma bombinha de anti-séptico bucal. Olhos
muitos azuis, boca feminina, usava um casaco de couro marrom e
uma exarpe de seda verde em torno do pescoço branco. Cabelos louros
e encaracolados cobriam a sua cabecinha de anjo.
Sílvia
era uns dez centímetros mais alta que ele, media um e setenta
e cinco, um pouco menos talvez, porque era difícil olhar de uma
só vez para toda a extensão do seu corpo. Você era obrigado a
se concentrar nas coxas grossas e bem torneadas, nas ancas largas,
na bunda saliente e rígida, e tórax e braços, e peitos robustos
e morenos, na mesma tonalidade do resto do corpo, com bicos do
tipo “mama-nenem” irradiando ondas de tesão num raio de muitos
quilômetros. Você não conseguiria desgrudar os olhos de tudo isso,
mas nunca conseguiria encarar duas vezes aquele rosto. Era um
rosto carregado de todos os anos da eternidade; flácido, repelente,
escorrendo e ameaçando desprender-se a qualquer instante dos ossos
da cara. Era como escavar o túmulo da sua avó e dar uma encarada
na velha um ano depois de a terem jogado lá dentro. O conjunto,
corpo e rosto, era trágico, trágico pra caralho.
Eu
vi aquele corpo em ação naquela noite. Vi todo mundo ignorar o
rosto e concentrar-se no resto. Eu tinha me apoderado de uma garrafa
de vodka e fiquei ali bebendo no gargalo, sentado num sofá grande
o suficiente para que duas das garotas ficassem ali se chupando
e enfiando uma na outra os objetos mais estranhos. Ali, bem do
meu lado.
O
que ainda posso lembrar daquela noite é do Adolfo, com o seu capacete
do exército alemão na cabeça, se masturbando com o seu inseparável
taco de beisebol. E o que eu quero dizer com isso é que ELE REALMENTE
TINHA ENFIADO AQUELE TROÇO NO RABO.
Lembro
do Mosca enrabando o anjinho Hugo em cima da mesa no centro da
sala e gritando um poema do Ginsberg que ele sabia de cor porque
ele sempre recitava o mesmo poema do Ginsberg toda vez que estava
enrabando outro cara. Ele dava duas ou três estocadas no anjinho
Hugo e gritava um verso do poema.
- “América, eu te dei tudo e agora não sou nada"
E mais estocadas. Hugo gemia como um cabrito e só não gritava
porque estava mordendo sua exarpe de seda verde.
- “América, eu não agüento mais a minha própria mente”
A
vodka já esquentava as minhas orelhas e logo faria ferver o meu
cérebro. Havia umas quinze pessoas divididas em grupos de dois,
três, quatro... trepando como bestas humanas em diferentes cantos
da sala. E havia um rodízio entre eles, de modo que a composição
dos grupos estava sempre variando. Só o Mosca e o Hugo permaneciam
isolados no centro da sala. O Mosca segurando o Hugo pelos quadris
e metendo no rabo dele com violência e ritmo. Três estocadas,
um verso.
- “América, quando acabaremos com a guerra humana?”
Eram
as cenas de um espetáculo de horror girando como um carrossel
na minha mente.
- “Vá se foder com sua bomba atômica”.
Rios caudalosos de sangue, sêmen e excremento turvando a minha
visão e distorcendo tudo à minha frente.
- “América, por que suas bibliotecas estão cheias de lágrimas?”
Havia
uma floresta em chamas no meu estômago que lançava labaredas de
fogo pela minha boca cada vez que eu empinava a garrafa e mandava
mais um trago de vodka goela a dentro.
- “América, pare de me empurrar, sei o que estou fazendo”.
Eu já via arbustos secos rolando pelo chão de uma cidadezinha
do velho oeste americano. Só que alguém estava enrabando o xerife
e acho que era o reverendo.
-“Meu psicanalista acha que estou muito bem”
Eu
via o inferno, acho que era o inferno, só podia ser o inferno,
com bosta fumegante por todos os lados.
- “América, são eles, os russos malvados”.
Tomei
mais um trago pelos russos.
- “América, tudo isso é muito sério”.
Olhei para o que restava do líquido na garrafa e me pareceu que
era o meu cérebro, do tamanho de uma castanha, boiando ali dentro.
- “América, será que isso está certo?”
Senti
alguma coisa estrebuchar dentro do meu estômago. Dobrei o corpo
para frente, enfiei a cabeça entre os joelhos e o vômito quente
jorrou entre os meus pés.
- “América...”
Ergui a cabeça e recostei-a no encosto do sofá.
- “América...”
O teto girava, o lugar inteiro oscilava como o navio do capitão
Lobo Larsen, a “Besta do Apocalipse”, à deriva, em meio a uma
tempestade infernal.
-“América...”
Antes
de apagar completamente, talvez eu tenha tido forças para dizer:
“Em algum lugar deste lado da América, deve haver um pouco de
amor para mim...” --“América...”
Do
mesmo autor
Alguém
estava enrabando o xerife e acho que era o
reverendo (parte 1)
Alguém
estava enrabando o xerife e acho que era o
reverendo (parte 2)
Este conto está no livro
Urubus de papo cheio, voando alto sobre as ruínas da cidade e
a carniça dos homens.
de Emiliano Rato Silva (Edição do autor, 1998).
contacto: emiliano@paginasub.cjb.net
|