Extraído
de
Geração Beat - Antologia,
Organização de Seymour Krim
Editora Brasiliense, 1968.
-Tudo
certo, então?
O pequeno engraxate deu um sorriso confiante e levantou a cabeça em
direção aos olhos do marinheiro, olhos mortos, frios, submarinos, sem
nenhum vestígio de calor humano, desejo ou ódio, sem nenhum dos sentimentos
que o menino conhecia em si mesmo ou nos outros, como o aroma mofado
de quartos desertos e trancados. O marinheiro examinava suas unhas com
uma intensidade ardente.
-Coisa
boa aqui, Gordo. Posso arrumar vinte. Mas preciso de um dinheiro adiantado.
-Para arranjar?
-É. ..não estou ainda com os vinte fininhos no bôlso. Mas é negócio
sopa. Basta dar uma corridinha e pronto.
O marinheiro olhava para as unhas como se examinasse um mapa.
-Arruma trinta. Dou dez adiantado. Essa mesma hora amanhã.
-Escuta, Gordo, preciso de um dinheiro agora.
-Dá uma volta que você arruma.
O marinheiro
dirigiu-se lentamente para a praça. Um moleque balançava um jornal no
seu rosto enquanto com a outra mão lhe furtava a caneta. O marinheiro
continuou andando. Tirou a caneta do bôlso e partiu-a como uma noz entre
seus dedos vermelhos, grossos e musculosos. Tirou em seguida um tubinho
de chumbo do bôlso. Cortou uma das extremidades do tubo com uma pequena
faca curva. Um vapor negro saiu do interior e ficou suspenso no ar como
uma pele fervendo. O rosto do marinheiro se liquefêz. Sua bôca espichou
para frente com a forma de um tubo comprido e sorveu a penugem negra
que boiava no ar. Vibrando em seguida com um movimento peristáltico
supersônico ela desapareceu no meio de uma explosão silenciosa e rosa.
Seu rosto voltou a entrar em foco, um foco insuportàvelmente claro e
cortante, enquanto a erva amarelada que ardia devorava as nádegas pardacentas
de milhões de viciados que gritavam. "Isso vai durar um mês",
pensou consigo, consultando um espelho invisível. Todas as ruas da cidade
correm por entre gargantas profundas em direção a uma praça imensa,
em forma de rim, mergulhada na escuridão. Os muros da cidade e da praça
são perfurados por cubículos habitáveis e por bares, alguns com apenas
poucos pés de profundidade, outros perdendo-se de vista numa confusão
de quartos e corredores. Em todas as alturas, existem cruzamentos de
pontes, passagens estreitas, bondinhos suspensos em cabos. Jovens catatônicos,
vestidos como mulheres, esbarram nos passantes com uma silenciosa insistência
pegajosa. Usam roupas grosseiras de saco, velhas e gastas, e trazem
os rostos exageradamente pintados; as cores vivas da pintura cobrem
marcas da batida, arabescos de cicatrizes interrompidas e supuradas
que atingem os ossos de pérola. Traficantes de Carne Preta, carne do
gigantesco centípede aquático - atingindo algumas vezes o comprimento
de seis pés encontrado em um caminho existente entre rochas negras e
lagoas pardacentas e iridescentes, exibem crustáceos imobilizados em
redutos clandestinos da praça, visíveis apenas para os Comedores da
Carne... O Café do Encontro ocupa um lado da praça, um labirinto de
cozinhas, restaurantes, cubículos para dormir, sacadas perigosas de
ferro batido e porões que levam às salas de banho sub. A terraneas.
Em bancos cobertos de cetim branco estão sentados nus os Mugwumps,(1)
sorvendo refrescos translúcidos e coloridos em canudos de alabastro.
Os Mugwumps não têm figado e alimentam-se exclusivamente de doces. Lábios
finos, azul-púrpura, cobrem os bicos de osso preto, afiados como navalha,
com os quais eles se despedaçam frequentemente uns aos outros em brigas
que surgem por causa dos clientes. Essas criaturas secretam, de seus
pênis eretos, um líquido que vicia e que prolonga a vida, tornando mais
lentas as funções do metabolismo. (Aliás, todos os agentes que prolongam
a vida viciam na razão direta de sua eficiência). Os viciados no líquido
dos Mugwumps são conhecidos como Répteis. Alguns deles voam por cima
das cadeiras com seus ossos flexíveis e sua carne rosa-preto. Por trás
de cada uma das orelhas dos Répteis sai um leque de cartilagem verde,
coberto de cabelos ocos e eréteis com os quais eles absorvem o líquido.
Os leques que são balançados de tempos em tempos por correntes invisíveis
servem também para uma forma de comunicação conhecida apenas dos Répteis.
Durante os Pânicos bienais, quando a andrajosa e escorchada Polícia
do Sonho devasta a cidade, os Mugwumps refugiam-se nas cavidades mais
profundas das paredes, fecham-se no interior dos cubículos da massa
argilosa e permanecem durante semanas em bioéxtase. Nesses dias de terror
cinza, os Répteis voam de um lado para o outro com uma rapidez cada
vez maior e passam gritando em frente um do outro em velocidade supersónica,
enquanto seus crânios flexíveis sopram os ventos negros da agonia de
um inseto.

A Polícia
do Sonho desintegra-se então em glóbulos de ectoplasma podre que são
expelidos por um velho viciado que tosse e cospe na manhã doentia. O
Homem Mugwump aparece com jarros de alabastro contendo o líquido e os
Répteis saem mansamente. O ar torna-se de novo parado e claro como glicerina.
O marinheiro descobriu seu Réptil. Ele continuou avançando lentamente
e pediu um refresco verde. O Réptil tinha uma boca pequena, em forma
de disco, de cartilagem marrom, e os olhos verdes inexpressivos estavam
quase recobertos pela fina membrana da pálpebra. O marinheiro esperou
uma hora antes que a criatura desse pela sua presença.
-Nenhuma
muamba para o Gordo? perguntou o marinheiro, enquanto suas palavras
agitavam os cabelos em leque do Réptil. O Réptil levou duas horas para
levantar três dedos rosados e transparentes cobertos com uma penugem
negra. Muitos Comedores de Carne ficam deitados em cima do vómito, excessivamente
debilitados para se moverem. (A Carne Preta é como um queijo passado,
irresistivelmente deliciosa e enjoativa, de sorte que os apreciadores
comem e vomitam, e comem novamente até cairem exaustos no chão).
Um jovem
com o rosto pintado entrou no café e apanhou uma das grandes tenazes
pretas do crustáceo - um odor adocicado e doentio espalhou-se em ondas
pela sala.
(1)
Mugwumps - Membro de um partido político norte-americano que arvora
o direito de uma ação política independente; originalmente simbolizava
uma pessoa importante. ( N. do T. )
Textos
de William Burroughs
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