|
João Antônio, visto pelo artista gráfico
Petchó |
por
Mário Satto
A
grandeza épica dos heróis que pululam nas páginas da literatura
anglo-saxã é o reflexo de uma cultura autocentrada, assente na
convicção da superioridade racial, na remanescência de uma valorização
tardia dos atributos de nobreza e linhagem. Ignora-se as contradições
sociais para dar vazão à verve mítica obcecada pelos prodígios
individuais. Essa obsessão contamina até mesmo algumas obras do
cenário underground - seus anti-heróis, amparados por um extraordinário
desempenho individual, se alimentam da expectativa da revelação,
da redenção e, em último caso, da morte incomum que acaba por
diferenciá-Ios dos reles mortais.
Foi tentando imitar esse padrão que a literatura brasileira perdeu-se
de sua finalidade, cavou sua sepultura e costurou seu fardão para
dentro deles aprimorar sua inércia e letargia. Esmerando-se em
importar modelos e em imitá-Ios à perfeição, os beletristas brasileiros
fizeram disso o nutriente de suas vaidades, o caminho fácil dos
prêmios e da aceitação do público, os adornos dourados de seus
fardões. Para não colocar em risco as suas ambições estilísticas,
fizeram vista grossa à realidade e ao homem brasileiro - quando
muito, idealizou-os para torná-los dignos de tratamento literário
segundo o virtuosismo das belas fórmulas importadas da Europa.
Como
então fazer para que a realidade brasileira, com suas contradições
mais agudas, e o homem brasileiro, na diversidade que o (in)define,
com sua própria estatura moral e espiritual, sua própria maneira
de ser, de agir, de (sobre)viver, seu anti-heroísmo inerente,
sem glórias ou vanglórias, como fazer para que tudo isso tenha
expressão de destaque em nossa literatura?
A chave da resposta está na obra de João Antônio, escritor brasileiro
nascido em São Paulo, em 1937, que se propôs a fazer literatura
num "corpo-acorpo com a vida brasileira", desancando assim os
virtuosismos formais que, na sua opinião, "não tem nada a ver
com o recado visceral de uma literatura realmente brasileira".
Filho de um funcionário de frigorífico e jardineiro, João Antônio
começou a trabalhar cedo como office-boy. Frequentador
assíduo dos salões de sinuca, da zona do meretrício e do ambiente
suburbano no qual cresceu, João Antônio recolheu nesses lugares
os personagens que povoam a sua literatura. Trabalhou ainda no
mesmo frigorífico em que trabalhara seu pai, foi bancário e redator
de publicidade. Estudou jornalismo e logo começou a publicar seus
contos em jornais e revistas. No fim dos anos 50, um incêndio
destruiu sua casa e com ela os originais inéditos de Malagueta,
Perus e Bacanaço, que ele rescreveria na cabine 27 da Biblioteca
Mário de Andrade e que seria finalmente publicado em 1963, arrebatando
prêmios dentro e fora do país.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1964. Lá trabalhou no Jornal
do Brasil, revistas Realidade e Manchete, jornal
O Globo, Diário de Notícias, e escreveu crônicas
para O Pasquim. Chegou a ser internado para tratamento
no Sanatório da Muda, episódio que o inspirou na escrita do livro
Casa de Loucos.
A
opção de João Antônio em povoar sua literatura com os "merdunchos",
viradores, marreteiros, prostitutas, gigolôs, mendigos, jogadores
de sinuca, "invertidos", erradios, as curriólas, a baixa malandragem...
veio da sua convivência com a fauna suburbana a respeito de quem
ele podia falar com autoridade e conhecimento de causa insuspeitos.
É uma escolha consciente de quem defendeu com unhas e dentes a
"nescessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever
sem nos distanciarmos do povo e da terra";enfim: "um compromisso
com a coisa brasileira sem retoques, imposturas e embelecos mentais".
Nem mesmo a rotina alienante do trabalho jornalísticos foi capaz
de fazê-Io renunciar à sua opção deliberada de produzir uma literatura
que refletisse as áreas mal iluminadas da vida brasileira: "o
futebol, a umbanda, a vida operária e fabril, o êxodo rural, a
habitação, a saúde, a vida policial. .."
Admirador entusiástico de Lima Barreto, a quem se referia como
"mestre", João Antônio via nele e em Graciliano Ramos, José Lins
do Rego, Oswald de Andrade e Manuel Antônio de Almeida, os verdadeiros
intérpretes da vida "luso-afro-tupiniquim", como ele gostava de
sintetizar o Brasil e o seu povo. Respeitava o empenho que tinham
esses escritores em procurar "descobrir, surpreender, flagrar,
compreender a nossa vida brasileira com suas contradições e sofrimentos,
imprevisões, improvisações, malemolências e descaídas, jogo de
cintura e perna entrevada".
Também admirava Trumam Capote e Norman Mailer como autores que
escrevem num corpo-a-corpo com a vida, narrando os fatos a partir
de dentro, produzindo uma literatura "de murro e porrada" que
mistura-se com o jornalismo "na proporção do despropósito".
Em
novembro de 1997, João Antônio foi encontrado morto em seu apartamento,
em Copacabana. Morrera há mais de um mês, certamente enfarado
com a falta de originalidade que ainda hoje continua impedindo
a literatura brasileira de encontrar o seu próprio caminho, desviando-se,
enojada, do contato com a realidade brasileira, evitando a todo
custo contaminarse com ela.
O legado de João Antônio, entretanto, está aí para mostrar-nos
que é do contágio com a nossa mais crua realidade luso-afro-tupiniquim
que pode surgir o novo e o autêntico em nossa literatura.
|