Extraído
de Cidade de Deus
Companhia das letras, 1997.
Cabeleira voltou ao conjunto no começo da noite. Tinha que mandar
dinheiro para sua mãe, não poderia dizer que mandaria depois,
porque não queria que o Ari voltasse em Cidade de Deus e, também,
pelo pai doente. O bicho-solto entrou na primeira birosca que
viu, não tinha tempo para escolher uma parada boa para achacar.
Com o revólver de cão para trás ordenou:
- Todo mundo quetinho aí! Vai botando tudo pra fora senão o bicho
pega!
Era bicho-solto necessitando de dinheiro rápido, nessa situação
assaltaria qualquer um, em qualquer lugar e hora, porque tinha
disposição para encarar quem se metesse a besta, para trocar tiro
com a polícia e o caralho a quatro. Tudo que desejava na vida,
um dia conseguiria com as próprias mãos e com muita atitude de
sujeito homem, macho até dizer chega. Contava, também, com a força
da pombagira, que lhe dava proteção, pois ela haveria de correr
uma gira forte para a boa vir em suas mãos na hora certa. Com
dinheiro à pamparra tudo é bom de fazer, qualquer hora é hora
de se fazer o que bem entender, todas as mulheres são iguais para
um homem que tem dinheiro e o dia que está por vir nascerá sempre
melhor. O negócio era chegar à quadra do Salgueiro ou do São Carlos
com uma beca invocada, um pisante maneiro, mandar descer cerveja
pra rapaziada, comprar logo um montão de brizolas e sair batendo
para os amigos, mandar apanhar uma porrada de trouxas e apertar
bagulho para a rapaziada do conceito, olhar assim para a preta
mais bonita e chamar pra beber um uísque, mandar descer uma porção
de batatas fritas, jogar um cigarro de filtro branco na mesa,
ficar brincando com a chave do pé de borracha para a cabrocha
sentir que não vai ficar no sereno esperando condução, comprar
um apartamento em Copacabana, comer filha de doutor, ter telefone,
televisão, dar um pulinho nos States de vez em quando, que nem
o patrão de sua tia. Um dia acharia a boa.
(...)
Lá no São Carlos, Cabeleira desde criança vivia nas rodas de bandidos,
gostava de ouvir as histórias de assaltos, roubos e assassinatos.
Poderia passar distante dos bichos-soltos, mas mesmo assim fazia
questão de cumprimentá-los. Nunca negava-lhes favores, fazia questão
de matar aulas para ajudar a rapaziada que botava pra frente:
limpava as armas; endolava a maconha; às vezes, comprava o querosene
da limpeza dos revólveres com seu próprio dinheiro para subir
no conceito com os bandidos. Quando ganhasse mais corpo, arrumaria
um berro para ficar rico no asfalto, mas enquanto fosse criança
continuaria a roubar os trocados do seu pai, ele não percebia
mesmo, estava sempre ligadão de goró. Sua mãe era que não marcava
touca com dinheiro, aquela ali era esperta mesmo. A felicidade,
a segurança que sentiu quando Charrão lhe pediu para entocar um
revólver em sua casa, cresceu muito mais depois que este fora
assassinado. Aquele ferro bonitão ficou para ele de mão beijada.
Tratava do três oitão como quem cuida da solução de todos os problemas.
Panacéia desvairada cuidada com querosene e a ânsia de rebentar
a boa.
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