A mistificação Beat - por Herbert GoldExtraído
de Geração Beat - Antologia Em Greenwich Village, um jovem mendigo de aparência sonolenta, vestido com um temo de verão surrado e imundo que havia passado pela universidade, e uma camisa de colarinho alto com os dois botões faltando, aproxima-se de um casal bem vestido e lhe pede: "Me dá um dinheiro para um Cadilac?". Em Nova Orleans, uma bela manequim de uma loja de artigos femininos aborda um homem numa festa, tira o suéter, depois o soutien e diz para ele: "Vamos nos divertir, tá?" - expressão essa que significa para ela: Que tal a gente ouvir esse novo disco legal no toca-disco, hein?. Se o homem arrisca tocar em alguma outra coisa além do braço do aparelho, a jovem lhe dirá: "Você é um selvagem, um homem sem modos. Só mesmo lhe podando". O que significa que ele não constará mais nas futuras listas de convidados. Em Denver, um bando de rapazes, sem saberem o que fazer numa noite quente de primavera, resolvem roubar um carro cada um deles; dirigem-se então para a outra extremidade da cidade onde estacionam os carros roubados; roubam em seguida outros carros e colocam-nos no lugar dos primeiros. Feito isso, acomodam-se em um local próximo e assistem com um sorriso de satisfação à enorme confusão criada entre os donos dos carros roubados e a polícia. Silêncio. Nova onda de tédio. Finalmente um deles diz, com a voz da preguiça: "Ei, por que não nos lembramos de pegar umas gurias?" Em St. Louis, uma moça e seu namorado, que tocava anteriormente bateria em um conjunto de jazz, começam a ter problemas de dinheiro com a vida desocupada que levam. Após algumas tentativas do rapaz em prostituir sua companheira, resolvem recorrer a um velho conhecido, pedindo-lhe casa e comida por alguns dias. O que lhes é concedido. Enquanto o dono da casa estava no trabalho os dois telefonam para um amigo em São Francisco, contam o ocorrido e sugerem, após terem conversado algum tempo, que o conhecido de São Francisco deixe o telefone fora do gancho, prendendo assim a ligação interurbana. Como o dono da casa só receberia a conta no fim do mês, não haveria perigo para eles. Ao serem interrogados por que haviam feito isso, responderam: "Porque ele é tão quadrado, meu Deus, tão quadrado!" Em Detroit, um engenheiro eletrônico interessa-se pelas dificuldades por que passa um jovem casal de estudantes. Sim, é amor verdadeiro o que sentem um pelo outro, mas o diabo é que não têm lugar para ir. O banco traseiro do carro só serve para brincadeiras de adolescentes e além disso dá dor nas costas. Está certo, eles podem usar seu apartamento. O que o jovem casal não sabe é que existe um microfone instalado no interior do colchão. Dias mais tarde, o amigo que cedeu o apartamento convida os dois a uma festa onde passa a gravação. Em São Francisco, um grupo de jovens poetas anuncia a Noite da Poesia Religiosa, atraindo um mundo de senhoras devotas e gorduchas que adoram essas coisas. Há de tudo: chapéus vermelhos, véus no rosto, bustos pesados e imponentes. O primeiro poeta levanta-se para fazer sua leitura. "C -- de P --" grita ele " para a assistência. Em uma rua de Chicago, um sujeito com cara-de-pau pára um transeunte na calçada, aperta-lhe a mão e diz: "Olá meu chapa, aperta aqui essa mão." ." - Desculpe, mas não lhe conheço." "- Eu também não lhe conheço, mas que tal uma farrinha?" . E o estranho se afasta lentamente; sua aparência sonolenta, feminina e passiva não desperta nenhuma confiança; pelo contrário, sugere baixezas impensáveis, coisas enfim que o fazem sentir-se importante. Ele não conhece ninguém e diz "meu chapa" para qualquer pessoa, porque não quer se aborrecer lembrando nomes. Em Nova lorque um escritor, Jack Kerouac, prepara-se para uma entrevista na televisão. "Somos beat, meu velho", diz ele. "Beat significa beatífico, significa que você está por dentro, significa muita coisa. Fui eu que inventei esse termo". Ele declara em seguida para os espectadores da televisão: "Gostamos de tudo, de Billy Graham, dos Big Ten, do rock and roll, do Zen budismo, de tortas de maçã, do Presidente Eisenhower - vibramos com tudo isso. Estamos na vanguarda de uma nova religião". Jack Kerouac refere-se constantemente, em seus livros, a Charlie Parker como Deus e a si mesmo como o Profeta. Estes são os hipsters. Quem é o hipster, o que significa ser hipster? O animal puro é tão difícil de ser encontrado como o "estudante" puro ou o puro "homem do centro oeste". De qualquer forma, tentemos acompanhar o rasto de sua história e de seus sintomas. Descobriremos provavelmente que a expressão "puro hipster" é equivalente a "100%" americano - isto é, um produto instável de conteúdo indefinido. O hipsterism originou-se com o esforço complexo do homem preto em recusar o papel que lhe era imposto de animal feliz e sorridente. Alguns pretos das capitais, dotados de uma elevada autoconsciência, começaram a imitar a atitude reservada do homem branco, sua maneira distante e reticente. Dessa forma, criaram um estilo de comportamento que era tanto uma crítica aos seus antepassados que cantavam passagens da Bíblia e que adoravam o jazz, quanto uma paródia dos brancos distantes e indiferentes. Eles improvisaram assim sobre um tema livre como fazia a música bop - exigindo dos ouvintes uma participação íntima e total. Caso contrário, ouvia-se apenas uma terrível barulheira de instrumentos. Os óculos dos intelectuais, com seus aros de chifre, passaram a ser conhecidos como "óculos bop". Isso porque provocavam belas visões. A piada tinha sua razão de ser. Foi a partir dessa época que alguns brancos adotaram a moda dos pretos, complicando a piada pelo fato de parodiarem uma paródia deles mesmos. A música cool foi a expressão artística dessa frieza aguda. Entretanto, para que os adeptos se abstivessem da dança, da gritaria e das emoções fortes, surgiu a necessidade de um elemento tranqüilizante, e ele foi encontrado na heroína. Alguns músicos da velha guarda, adeptos do hot jazz, haviam feito uso da marijuana, outros do álcool; esses excitantes atuavam como molas que os jogavam para o alto durante uma sessão. Contudo, havia um forte preconceito nessa época contra os músicosque tomavam drogas injetáveis; acreditavam muitos que havia o perigo de se injetar uma bolha de ar na veia. He he, isso não, diziam eles. Além disso, afirmavam, os drogados tocavam mal seus instrumentos, fossem eles bateria ou saxofone. Não tinham idéia do que estavam fazendo. A nova geração contudo deu preferência a uma música íntima, super-celestial. A heroína dissolvia o espírito de grupo e cada qual tocava sozinho, ou voava solitariamente em direção a seu paraíso artificial. E sem perder o ritmo da música, que era o principal. E como muitos outros jovens norte-americanos sentiam-se atraídos pelo espírito beat e apreciavam manifestar uma atitude distante ("cool") , eis que surgiram três hordas rebeldes nas fileiras da primeira sociedade hipster, essa esposa ainda virgem da tranqüilidade bop: 1.Os freqüentadores das ruas principais da cidade, com suas costeletas compridas, motocicletas e calças blue jeans; 2.Estudantes e alguns literatos, que encontravam na atitude distante do drogado uma expressão visível da frustração dos que estão acostumados a viver na abastança e que ficam a zero de repente; 3. A classe boêmia mais elevada, cansada de Van Gogh, filmes italianos, testes de inteligência e sexo, disposta por conseguinte a experimentar a anti-arte, o anti-sexo, o não-movimento do anti-delírio. Entre esses últimos encontram-se os esnobes da Madison Avenue, as jovens manequins que se despem unicamente para manifestar seu desagrado pelas revistas de moda, os publicitários e advogados que se casam com prostitutas de classe ("call-girls"), o batalhão dos privilegiados manipuladores de símbolos, abarrotados de dinheiro e de dívidas, corados por fora graças aos banhos de luz dos aparelhos General Electric e vermelhos de vergonha por dentro, e que manifestam suas depressões de benzedrina criticando tudo à luz de um poste. "Sabe de uma coisa. ..Albert Schweitzer não me convence com seu ar de santo. ..é verdade que ele fugiu de casa com a Kim Novak?" -Todo mundo diz, comenta uma linda jovem que está sem programa para a noite, que eu sou tremendamente enjoada. .. Pois bem, fale a verdade: você gostaria que a gente fizesse uma bobagem essa noite? Por mim, eu não me importaria. ..Meu nome é Uvinha, e o seu? Examinemos agora, mais de perto, o coração de águia do jovem hipster. Quando o hipster tem uma relação sexual com uma mulher, ele não admite gostar dela. Mostra-se indiferente. Sugere a ela que dê os primeiros passos. O prazer máximo para ele consiste em não pensar em nada, permanecer inteiramente ausente, um cidadão da Cidade-do-éxtase, enquanto a mulher brinca de gangorra em cima dele. Se por outro lado o hipster tem uma aventura com um homem, não é porque seja um homossexual convicto, mas é unicamente por dinheiro, para pegar uma carona até em casa, ou então para passar o tempo enquanto espera seu grupo de amigos. Quando o hipster rouba um carro, ele não foge com ele, nem tampouco o vende: ele o esconde num lugar onde os quadrados vão suar para encontrá-lo, e escreve com sabão no parabrisa essa mensagem "Mort à Louis A". Quando o hipster ouve música, lê Proust ou estuda religião, ele o faz somente para ter assunto de conversa, para ter alguma coisa na mão ou no bolso da calça, quando não é apenas para exibir-se diante dos amigos; todas essas ocupações não fazem o menor sentido para ele. Mas não faz mal, diz ele, é tanto melhor quanto menos sentido fizerem. Em outras palavras: o hipster é o exemplo acabado da fuga da emoção. É como uma geladeira que funciona mal: ela trabalha sem parar, faz um barulho dos infernos e esquenta tremendamente, e tudo isso com uma única finalidade - produzir frio. Essa geladeira é acionada pelo crime sem nenhuma necessidade econômica. Um editor lamenta-se com um escritor hipster: "Veja você, quando eu dormia nos bancos e me alimentava de cachorro-quente, eu agia assim porque era obrigado. Meu problema era simples: precisava comer e dormir. Não fazia isso para contar para os outros". Essa geladeira é acionada pelo sexo sem que haja paixão; a única paixão existente é matar o sentimento, exterminar as ansiedades. Essa geladeira é acionada pela religião sem haver fé; o hipster atormenta-se a si mesmo à procura da escuridão total do esquecimento, e todos os alívios que a religião forneceu aos místicos do passado só serviriam para importunar a colossal apatia que ele busca. Ao contrário de Onã, que jogou a semente do homem na terra, o hipster atira fora sua mente e considera isso um ato religioso. Ele usa igualmente da música, da arte e da religião como se fossem emblemas de identificação. Em lugar dos apertos de mão clandestinos que o teriam introduzido nas sociedades secretas do passado, como o "Uncle Don's Boys Club" ou a corphan Annie Secret Society", sua senha agora é: "Você manja Charlie Parker? Proust? Zen budismo?" "- Eu sou hip", diz o amigo. Essa resposta significa: Não precisa explicar mais. Moro nessa jogada. Estou de acordo. Entendo o que você diz. Muita calma. Vai pela sombra. Até mais, então. A linguagem dos jovens hipsters é um meio em vista da não-comunicação. Um sinal de silêncio. A verdadeira conversa é tomar drogas. Isso porque os narcóticos, mais do que qualquer outra coisa, dão aos rapazes beat exatamente o que precisam : relaxamento do corpo e da imaginação, a ilusão de um mergulho fora do tempo na eternidade. Não é um sentimento de onipotência que eles buscam, como poderia. parecer. Em outras palavras, eles anseiam por uma tranquila simulação da morte. É tolice pensar que as drogas geram maníacos sexuais, como dão a entender certas histórias sensacionalistas e sentimentalóides. O homem viciado não deseja outra coisa na vida senão sua dose de excitante. Ele é indiferente a tudo mais. Tranquilo, tranquilo. ele pode praticar terríveis violências para conseguir sua ração de droga, mas não por razões sexuais: 0 prazer sensual não tem nada a ver com os sonhos da heroína. O rosto delicado e desbotado do viciado, com seus olhos apagados e submissos, a boca entreaberta, tem algo de feminino na sua doçura. Não existe agressividade ou amor nele. A heroína permite ao hipster tomar-se a sentinela de sua alma, sonhando com um tranquilo nada, um belo e indiferente nada, enquanto seus pés tamborilam no chão de nervosismo e ele abre e fecha 0 canivete de mola, estala sem parar as articulações dos dedos, ou folheia agitadamente um exemplar de Proust. Não é preciso dizer que os hipters mais moderados não tomam heroína. A voga atual por tudo que é hipster - linguagem, maneiras e costumes - indica que não se trata de um fenômeno isolado. Jack Kerouac proclamou: "Mesmo os estudantes das grandes universidades estão se tornando hips." Originários da música bop, do uso de narcóticos e da sutil revolta dos pretos contra a acusação de serem "felizes, ardentes e emotivos", os hipsters adotaram como um de seus modelos principais um dos mais típicos fenômenos norte-americanos: o cinema. O hipster ignora o conselho dado por John de Garland, moralista religioso do século XIII, que disse: "Não peque contra a carne, ó estudante! Tenha modos quando estiver em pé ou sentado, não se coce!" Os hipsters da escola de Stanislavsky vivem se coçando, como se a angústia da alma que sentem fosse proveniente de mordidas de pulga; andam com a cabeça inclinada sobre o pejto como se fossem catar alguma palavra de Marlon Brando caída no chão, ou alguma notícia do paraíso subterrâneo de James Dean. A sombra cinematográfica de James Dean, ou do Marlon Brando do filme "o Selvagem", é parte da imagem do hipster, quer seja ele o hipster corado e boa pinta das universidades, que se contempla a si mesmo na vitrina de uma dessas lojas ortopédicas que operam os ossos do ombro, quer seja o hipster subnutrido e cabeludo que anda com uma garota se balançando no assento traseiro de sua ruidosa motocicleta Harley Davidson, modelo 74. Em muitos cinemas onde o filme "O Selvagem" foi exibido, houve verdadeiras reuniões no banheiro dos homens depois da sessão; filas de motociclistas, com seus blusões de couro arranhados de unhas, miravam-se com adoração diante dos espelhos como se repetissem essa ou aquela cena do filme. Cada um deles julgava-se um outro Brando, distante ou violento. Ou um outro Marlon, frio e impassível. Ficavam em fila sem se envergonharem, quase sem se envaidecerem (tão puro era o sentimento!) como prosélitos que se preparam para a cerimônia expiatória em seus hábitos de penitência, as costeletas compridas, correntes de prata balançando nas mãos e no peito, cabelos compridos aparados na nuca, como a cauda de certas aves. Não se cocem, ó turma! Assim, as linhas de comunicação dos hipsters estendem-se desde os cinemas poeiras das cidadezinhas do centro-oeste até os salões elegantes de Nova lorque ou São Francisco. Eles nos lembram os teddy boys da Inglaterra, os jovens rebeldes do Japão derrotado, os existencialistas anêmicos de Saint-Germain-des Prés, em Paris, cantarolando as velhas músicas de jazz ouvidas nos antigos discos de 78 rotações. Os apologistas do movimento beat, especialmente os jovens literatos de São Francisco e Nova lorque, recorrem frequentemente à história a fim de exumar os gênios criminosos da poesia francesa - Rimbaud, que desapareceu misteriosamente na África, Villon que terminou a vida dançando numa forca, Genet, que está fazendo atualmente um grande sucesso na literatura e no teatro em Paris, após uma carreira de latrocínio, chantagem e prostituição masculina. A diferença fundamental entre o hipster literato da América do Norte e seus modelos estrangeiros está no fato de que os grandes artistas criminosos do passado eram verdadeiros párias sociais: não eram eles que se expulsavam a si mesmos do convívio da sociedade. Eles eram expulsos por preconceitos de classe e pressões econômicas. Alguns hipsters norte-americanos tiveram realmente um comportamento espetacular - sobretudo no hospício; um deles brincou de Guilherme Tell com sua mulher e estourou-lhe os miolos. São exemplos isolados, porém, e não são de forma alguma o produto de uma perseguição social em grandes proporções. Aliás, quem não tem seus dramas pessoais? Eu entendo os de vocês, rapazes, mas eu também tenho os meus. De qualquer forma, o hipster de 1958 não é o arrojado trovador medieval, príncipe da poesia e das prisões sem conta, nem o poeta aventureiro e romântico das gerações seguintes, nem tampouco o desempregado revoltado da época da Depressão: o hipster de hoje é o verdadeiro rebelde sem motivo. Ou melhor, ele tem certamente um motivo: seu ego destruído, ainda que seja um ego sem necessidades ou relações humanas. 0 hipster norte-americano é um vagabundo silencioso com uma grande tendência para a criminalióade, um andarilho que reluta em aceitar as obrigações dos homens, um flanador levemente afeminado que ronda as cenas de violência. Se não pode ser um grande herói nos tiroteios de guerra, como Gary Cooper, ele se consola tirando o escapamento de sua motocicleta, como Marlon Brando. Acima de tudo, ele está possuído pelas três grandes doenças do homem norte-americano: a passividade, a ansiedade e o tédio. Individualistas sem individualidade, rebanho sonolento de pensadores que não pensam, turba solitária na sua solidão mais Iamurienta, era natural que os jovens hipsters recorressem à heroína como uma forma de submissão absoluta. Como ocorre na submissão pelo tédio à televisão e ocupações similares, substitutos da inventividade pessoal, o uso dos narcóticos supõe a abdicação do senso comum entre pessoas que não têm a coragem de trilhar os próprios caminhos. - Eu experimentei de tudo, meu chapa. - E o que você pretende fazer agora? - Não sei, meu chapa. Inventar uma novidade qualquer, quem sabe... Se a descrição do hipster como um tipo "passivo" parecer severa ao leitor, veja o que diz o dicionário a respeito dessa palavra: "Em medicina: pertencente a certas condições mórbidas caracterizadas por deficiência de vitalidade e reflexos." A palavra hipster surgiu com o movimento bop; significava musicalmente uma atitude calma, relaxada, associada ao mesmo tempo com o consumo de narcóticos - uma forma de se manter calmo sexualmente. O hipster que toma um entorpecente não é um anarquista sexual: ele é um zero sexual, e a heroína é sua mamãe e seu papai. (o passador de narcóticos, no romance A Hatful Of Rain, é chamado de "mamãe"). Não é todo hipster naturalmente que espeta uma agulha na tatuagem do seu braço, mas são os que assim agem que dão a nota ao movimento. Os rapazes mais "avançados" na turma chamam-se uns aos outros pelo nome de papaizinho", como se a passividade deles chegasse ao ponto de confundir qualquer homem com a imagem do pai protetor. É verdade que o músico ambulante não se pode ao trabalho de lembrar o nome de cada pessoa que conhece, daí chamar a todos, indistintamente, de meu chapa", velhinho", "paizinho". No fundo eles adoram a fantasia da brutalidade masculina criada por Tennessee Williams, William Inge e outros, que foram os inventores de um novo herói teatral: o grande machão. Deliciosamente brutais, desprovidos dos principais atributos da verdadeira virilidade -inteligência, finalidade e contrôle - esses fantoches masculinos são as ondulantes Mae West do melodrama popular. Depois da morte, James Dean e Charlie Parker foram considerados imortais. Tendo sobrevivido e passado um pouco da idade, Marlon Brando foi julgado um traidor do mito dos suicídios sagrados com carros-esporte ou heroína. Eles teriam talvez perdoado a Marlon Brando seu recente desinteresse pelo bongô; sua calvície precoce, contudo, é um crime imperdoável. O novo herói,forte e silencioso, deve ser também frágil e lindinho. Uma das veredas mais curiosas do hipsterism é a que leva aos distantes acampamentos religiosos. Jack Kerouac diz: "Estamos na vanguarda de uma nova religião" .Essa frase soa mais ou menos como a do franciscano que declarava ser o campeão mundial da humildade. Os jovens "santos" cultivaram São João da Cruz durante uma época, depois se apaixonaram pelo cerimonial da Igreja Católica, mais tarde tornaram-se admiradores ferventes de São Francisco de Assis; em seguida passaram para as fantasias religiosas bizantinas, gregas e ortodoxas, com ícones e incenso queimando, cenário em tudo igual ao de um romance de Dostoievsky. Recentemente, alguns dentre eles começaram a chamar-se Zen hipsters e o Zen budismo alastrou-se como a gripe asiática. Assim é comum hoje em dia encontrar num restaurante chinês de São Francisco no lugar da tradicional sorte que embrulhava os pauzinhos com que se come, essa mensagem: "Prove o nosso tremendo Sukiyaki Zen; Só um quadrado gosta de comida,chinesa". A promiscuidade na religião significa, como no caso da heroína, um sinal de desespero, um recurso desesperado num momento de aperto, um mergulho passivo na irracionalidade. A doutrina Zen, como as demais religiões, possui seus aspectos admiráveis, mas o hipster passa através deles como um acrobata de circo passa por um círculo de papel: ele vai cair na eterna falta de confiança em si mesmo que o espera dentro da tina gelada. As atividades religiosas dos hipsters curam a angústia que lhes causa o mundo da mesma forma que dançar de rosto colado cura a halitose. Não é de espantar que ele diga: "Ah estou na onda.. .estou bem no alto da onda. ..sou o mais religioso, o mais humilde dos homens. ...estou no alto, meu velho." Se ele gagueja é porque alguma coisa está faltando, talvez a parte vital, as operações centrais da mente. Sua alma, o significado das coisas, sua dignidade individual (chamem pelo nome que quiserem) foi extirpada como desnecessária por uma civilização que produz muitas coisas sem uma finalidade recomendável. Ele sente que o amor não é mais amor, o trabalho não é mais trabalho, até mesmo o protesto perdeu a razão de ser. Diante da enorme diversidade de produtos postos a venda o hipster escolhe o pior de todos os produtos da ansiedade: o tédio. Essa é sua reação diante de tudo que a existência moderna lhe oferece como bens de consumo, conforto, segurança no futuro. Sua ansiedade pelas perspectivas da vida gera o tédio. E o tédio por seu lado provoca uma maior ansiedade. Enquanto o homem da classe média compra um tijolo para a nova igreja do seu bairro ( Será que Deus precisa dessa pista de boliche?), o hipster procura resolver seus problemas pessoais adquirindo livros de histórias Zen, ou coisas no gênero que estejam na moda. Naturalmente ele gagueja ao comentar o que leu: "Legal, velhinho, muito legal". Seu desejo, ao folhear esses livros, é parar com a inquietação, com o tamborilar de mãos e pernas, com a trepidação do corpo. Ele se julga um gênio de sabedoria porque não tem mulher, filhos, nem responsabilidades. Como também não trabalha nem pertence a nenhum partido político. O homem médio também possui e não possui essas coisas. Quem pode chamar de trabalho o fato de passar adiante tiras de papel? A maioria dos norte-americanos são passadores de tiras de papel. Como pode ser o amor da mulher e dos filhos mais do que um hábito social se o homem sente, na sua condição de homem (e não enquanto marido ou pai) , que ele não possui nenhuma autoridade fora de sua casa? Quando o lar é o único castelo do homem, é sinal que ele não possui um castelo. Tanto a elegância de maneiras quanto a ambição são características do ser humano, e não dos animais, ainda que os ratos e os coelhos aprendam o sentido do desespero graças a repetidos choques elétricos. Diante da ameaça de uma absoluta manipulação social, o hipster lança mão de seu último recurso: êle dança dentro da jaula, abana o rabo e salta sobre os fios eletrizados. A afimação generalizada segundo a qual os norte-americanos têm verdadeiro culto pela posse de objetos ou bens de consumo não é suficiente para explicar esse fenômeno. Os norteamericanos exigem também manifestações de fôrça, sejam elas vividas pessoalmente ou assistidas pela televisão. Esse fato poderia ser considerado uma necessidade natural se a miragem obsessiva do poder não perturbasse a tranquilidade que dá um sentido à vida e permite ao homem enfrentar seus problemas pessoais, sejam eles o trabalho, o afeto dos seus, a educação dos filhos, a morte. Certas experiências afastam-se mais do objetivo que temos em vista do que dele se aproximam, e cada vez isso ocorre a uma velocidade maior. A experiência não deu resultado, tentamos experiências mais violentas; elas ainda não o foram suficientemente, recorremos a outras mais violentas e assim sucessivamente. A televisão como meio de distração é algo tão pouco condenável quanto um bom uísque: ambos podem ser bons amigos. O que é prejudicial é ficar na dependência de um ou de outro, como ocorre com os espíritos debilitados. Viver uma experiência imaginária, como meio de distração e relaxamento, é uma grande experiência que nossa fantasia nos pemite. Ficar atordoado, porém, com a experiência algo completamente diferente: é o desespero pelo choque elétrico. Sensível a tudo isso, o hipster decidiu dar o fora - abandonar essa vida - não ter mais nada com isso. Em lugar de ser um dos membros da massa humana que passa horas sem conta diante dos aparelhos de televisão, ele se transfoma numa audiência isolada e individualista diante de uma ampola de narcótico. Ele desistiu de ser uma criatura humana nos moldes sociais contemporâneos. Chegou à conclusão que os problemas dessa sociedade não lhe dizem respeito. Ele simplesmente se desinteressa, afasta-se. E o homem que se ocupa com essas ninharias é denominado pelo hipster de "alienado". Seja como for, o hipster é um membro dessa alucinada América onde um Tab Hunter declara, numa entrevista, que só consegue domir abraçado ao seu ursinho Teddy. O hipster é a vítima da mais desesperada condição de escravidão - a do escravo que não sabe que é escravo e orgulha-se de sua dependência, denominando-a "liberdade". É uma doença incurável? Quase. Sua atitude de negação e passividade é batizada com os nomes de religião e revolta, quando se trata simplesmente de um fenômeno de massa. Esses niilistas navegam sonhadoramente pelo Nilo das estradas norte-americanas, consumindo a maior parte do dia fazendo programas para a noite, e teminam por convencer-se a si mesmos, como aconteceu com Jack Kerouac, que Charlie Parker é Deus. Os jovens personagens do romance On The Road anseiam por uma paz interior dentro de sua existência beat, uma "beatitude" que se hamonize com suas calças blue jeans e seus cabelos sujos, sonhando com aventuras fantásticas na companhia de jovens maravilhosas (que também usam calças blue jeans e andam com os cabelos imundos) .Ocasionalmente, como ocorre com alguns fanáticos do tipo sub-hipster apresentados por Kerouac, o sexo substitui-se aos entorpecentes. No fundo, trata-se de mais um substituto para uma vida sexual normal. A mesma gulodice que certos homens revelam pela posse de bens, Kerouac empresta aos delírios eróticos de seus personagens, esquecendo-se que se um boiadeiro usa do sexo como ferrão, cada espetada torna mais rombuda sua ponta. O hipster é um fenômeno típico das esquinas, dos bares e das festas, uma criatura dos aglomeramentos humanos. Um Rimbaud isolado pode ser um gênio - uma multidão de Rimbauds é apenas uma moda passageira. A voga anterior da psicanálise tinha pelo menos uma coisa a seu favor. Freud acreditava no valor excepcional das emoções humanas, por mais que afirmasse a necessidade de serem controladas pela inteligência. Em outras palavras: ele aceitava a sociedade independentemente dos prejuízos trazidos pela civilização. O hipster desiste da sociedade, abandona a inteligência e acredita estar beneficiando suas emoções ao agir assim: ele não percebe que sua passividade liquida exatamente com sua personalidade. O que resulta é um indivíduo abobalhado e irrequieto, apesar de alguns líderes do movimento possuírem um talento vivaz. Não devemos nos espantar pois se os "melhores representantes" dessa geração estão no manicômio. Catatonia, estamos chegando! Esses barulhentos pássaros lunares assemelham-se a satélites artificiais que os burocratas houvessem lançado no ar da realidade espacial, onde giram dentro de uma órbita predeteminada, mandam sinais cada vez mais fracos à terra, perdem pouco a pouco altura, incendeiam-se, explodem e desaparecem. Quando Yeats olhou para o futuro na esperança de descobrir um poderoso salvador, que houvesse evoluído da animalidade para alguma forma bizarra e maravilhosa e escreveu esses versos Que animal selvagem é esse - sua hora tendo soado finalmente que caminha de cabeça baixa em direção a Belém onde há de nascer? Ele não se referia certamente a James Dean.Talvez, como pretendem alguns, a abstenção dos sentimentos humanos pregada subterraneamente pelos hipsters gere uma nova sinceridade da emoção. Talvez o gambá aprenda um dia a voar, mas se o mesmo acontecer com homem admito, meu chapa, que há de ser um pássaro bem estranho. Textos
Os Ignorantes boêmios - Por Norman Povhoretz
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