Extraído
de Capão Pecado.
Labortexto Editorial, 200.
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Cê tá ligado, ele não quer mais saber de dor, da precisão, da
fome, da porra da nóia. Cê tá ligado? Ele só quer adentrar a terra,
parar de sofrer, mano.
- Mas Burgos, num dá dessa mano, ele é seu irmão, como você vai
subir seu irmão?
- Que se foda! Ele é meu mano de criação, e o filho da puta vai
morrer de qualquer jeito, China.
- Mas ele pode tomá aquele bagulho lá, aquele tal de AZT.
- Que nada, num vou ficar vendo ele se acabar assim, o vírus tá
comendo ele, e hoje ele vai subir.
Burgos estava ao seu lado já fazia alguns minutos, tomaram algumas
cervejas e depois combinaram de fumar um baseado lá no pátio do
José Olímpio. Apesar de ser seu irmão, ele nunca tinha sido tão
bem tratado assim por Burgos, e quando acenderam o baseado ele
perguntou o que tava pegando. Burgos respondeu que ele iria subir,
porque tava com o vírus da AIDS. Ele tremeu e quase derrubou o
bagulho, mas pensou se tratar de uma brincadeira e disse que o
vírus ainda não havia se manifestado, e talvez nem chegasse a
se manifestar, afinal a medicina estava avançando a cada dia.
Burgos nada respondeu, puxou uma pistola italiana Beretta calibre
22 LR da cintura e mandou ele dar o último trago de sua vida.
Ele fumou, jogou a ponta no chão e caiu na quadra com um único
tiro no meio da testa. Burgos disparou somente uma vez, mas não
foi pra economizar bala, foi para, no caso de alguma caguetagem,
poder alegar legítima defesa. Colocou a pistola na cintura novamente,
pegou a pontinha no chão, voltou a acendê-la e saiu fumando pela
favela.
(...)
Na pizzaria, cerveja era água. Ratinho, Jacaré e Ceará haviam
assaltado uma loja de conveniência em Moema e estavam bancando
tudo. Geóvas, Pássaro, Zé do Carmo, Kim, Jura e outros manos tavam
só na serra, a noite estava garantida.
(...)
Na boca, China comprava umas buchas para ele fumar com Ratinho,
Naná e Mixaria. Marquinhos havia acabado de chegar, tinha vendido
quase toda a carga de algodão e apesar de estar a fim de beber
umas cervejas geladas, não iria à pizzaria por causa de sua mina,
que o esperava em casa para uma longa noitada de amor.
(...)
A dois metros dali, seu amigo Testa sentia o frio do aço quando
este penetrou sua boca, sua língua se contraiu e seus dentes bateram
com força no cilindro da morte. Burgos segurou o cano firmemente
na boca de Testa e lhe fez elogios com demasiado ar de superioridade,
suas palavras não alcançavam o pequeno menino viciado em pedra
e pixador nas horas vagas, pequeno devedor, muito pequeno para
tão grande dívida. A lei na quebrada não é a quantia, mas sim
o respeito, que deve acima de tudo prevalecer. Burgos arrancou
o cano rapidamente de sua boca, e o garoto gritou quando sentiu
que ainda estava vivo, os espaços em sua boca ficaram vagos, os
dentes foram arrancados pelo cano do revólver. Ele tentou pedir
socorro, mas sua boca pronunciou palavras estranhas, não que isso
fizesse diferença quanto a alguém o ajudar, ele desistira pois
sabia que nada iria fazê-lo sentir mais dor do que a abstinência
da droga. Ele se entregou e aceitou a morte como se aceitasse
um grande presente, em seus pensamentos as palavras finais de
Burgos não contavam, ele viu lindas paisagens, ele estava viajando,
mas foi ruim o ar que entrou em sua boca quando o primeiro tiro
foi efetuado, Deus! Como é ruim, não dói, pensou o menino. Simplesmente
o ar entrou pelo furo e provocou um frio insuportável, são dois
os tiros, e então três, mas o frio impedia seu raciocínio e ele
viu um médico, sua mãe o pegou no colo e beijou sua testa, seu
pai lhe deu um caminhão no Natal, seus amigos lhe fizeram uma
linda festa surpresa, sua primeira namorada foi a Regina, filha
da Dona Dulce, seu amigo lhe deu um cd do Gog de presente e ele
escutou: "Um corpo estendido no meio da rua, somente Deus por
testemunha". Testa se arrepiou todo. O Mixaria lhe vendeu seu
primeiro cano, foi uma Pistola GP-35 Browning, um tesão de arma,
fabricada na Bélgica, e foi também o Mixaria que o convidou a
cometer seu primeiro assalto, seu avô o adorava e não acreditava
naqueles boatos, sua avó ainda tinha na sala seu retrato, sua
coleção de moedas antigas continuava guardada, ele não viu o rosto
de seu irmão quando soube da conta bancária que ele havia aberto
para ele, não viu a cara dos vizinhos quando chegou do serviço
de gravata e de celular, certamente disseram, que nego enjoado,
mas não viu, não viu.
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