Extraído
de Leão-de Chácara
Estação Liberdade, 1989.
A
Casa de Detenção é a maior escola que um malandro tem. Na Detenção
um malandro fica malandro dos malandros.
Entrei com o pé frio no ano de 54, perturbei bem pouco e quase
me virando sozinho, dei a maior onda de azar da vida deste aqui.
Morreu-me Ivete; Bola Preta e Diabo Loiro caíram na Ilha das Cobras
e de lá não voltaram vivos; me sobraram apenas Valquíria e a rua.
Por demais policiada. A cidade limpa da gente.
Muita mulher foi deportada para os interiores de São Paulo e até
para outros Estados. As poucas que se agiientaram aqui, escapadas
dos ataques da rataria, vão ajeitando aos poucos, pela Rua Guaianases,
Gusmões, Vitória e por todas as beiradas das estações até a Avenida
São João e o Arouche, os buracos, os esquisitos e os muquinfos,
que continuarão a putaria. Mas os homens da polícia oprimem e
batem - a eles não interessa que as minas só tenham Deus e a rua.
Após 53, toda uma safra de malandros caiu do cavalo, sendo apagada
nos tiroteios ou guarda da na cadeia. Até aí, o governo ganhou.
Os jornais fantasiaram, com falsidade, a queda da gente, jogando
gabos no governo. Só não reportaram o que foi a matança na zona
e não houve fotografias, nem pena, nem lero-leros para aquelas
misérias. Só não explicaram, os tantas, o porquê da nossa queda.
Só ninguém soube que caímos de quatro porque nos faltaram Bola
Preta e Diabo Loiro. Na crepe danada de me faltarem os dois, o
trio ficou só em Paulinho duma Perna Torta. E não pude, como queria
e craniei, catar meus vagabundos para tomar alguns pontos na ignorância...
O governo ganhou. Mas ninguém explicou por quê.
Sozinho, meu capital se esfacelando, pulando de um hotel para
outro, Valquíria não ganhando, a polícia no meu calcanhar e ainda
precisando de grana, Aniz Issara mandando pedir verba para meus
processos estourados, precisei trambicar . Peguei um espeto atravessado
num ônibus Avenida, quando mandava o couro do bolso de um otário.
Caí na Detenção.
Não faço conflito durante três anos. Neles, aprendo atenção. Puxando
esta cadeia, acho velhos camaradas das curriolas, meu nome se
impõe aqui no chiqueiro da Avenida Tiradentes. Sou juiz da cela
do terceiro pavilhão -o lugar especial dos perigosos. Aqui corre
maconha, tóxico, cachaça e carteado. Afino mais o meu joguinho:
lá fora, em liberdade, há trouxas; aqui é só malandro. Vivo mais
acordado do que todos os carcereiros juntos. Cobiço e tomo tudo
dos outros e penso mais demorado no jeito de roubar .E vou ficando
malandro dos malandros.
Valquíria me faz visita. Exijo dinheiro, maconha (que me traga
na barra da saia, e esses novos tóxicos que vão surgindo agora
na praça -dexamil, pervitin, dexin... Ela me conta, aqui no pátio
da Detenção, que a situação dos viradores está arribando lá fora
e até já existem casas montadas e hotéis que dão entrada a casais
sem documento. A putaria vai se ajeitando. Laércio Arrudão e seus
irmãos voltam a circular.
Valquíria se despede, esta hora da tarde de domingo é uma tristeza
besta, eu sinto falta do corpo dela. Distribuo ordens. Que me
traga o advogado.
Recebo
o doutor Aniz Issara. Boquejamos. Entendo as coisas aqui. E meu
bom comportamento vira um provérbio. O diretor me requisita, examina
a papelada, me examina. Sou transferido para o segundo pavilhão
e dali para o primeiro. Valquíria levanta grana, passa cem contos
a Aniz e sou passado, todo o respeito a um bandido linha de frente,
prisão especial.
Conheço os grandes Itiro Nakadaia, Hamleto Meneghetti e Zião da
Gameleira. Um, japonês e rei do estelionato e da falsificação
moedeira: a malandragem desse bicho é internacional. Meneghetti,
já velho e descorado, é ainda o cobra maior do assalto de jóias
-vinte e cinco passagens só na Detenção. O terceiro, Zião da Gameleira,
dono da macumba de São Paulo, cinco tendas só no Jabaquara, levou
na bicaria até um governador e alguns padrecos; um baiano gordalhudo
e acordado, que não se sabe se dirige mais macumbeiros estando
em liberdade ou guardado aqui na Detenção.
Eu me comporto muito direitinhamente, como reza Aniz Issara. Mas
Itiro Nakadaia recebe visita de gente graúda, que é capitão de
indústria e outros babados; Meneghetti faz atrapalhadas, dorme
os dias inteiros e pelas noites funciona como um bicho elétrico,
tentando a fuga duas vezes por semana, e finta os carcereiros:
às vezes, vão farejá-lo nas ruas da cidade e ele ainda está na
cadeia.
Zião da Gameleira faz macumba, despachando daqui mesmo. Até deputado
e técnico de clube de futebol já vi apontar por aqui. Facilito-lhe,
de fininha, alguns macetes e tarecos. E não sei por quê. Mas tenho
confiança nesse Zião.
É um picardo. Esse Zião da Gameleira me encabula. Uns olhos parados
e pequenos de bicho sonolento, uma papada enorme de quem come
muito doce. E calma... Nada afoba esse Zião, gordo e sossegado.
Um baiano que parece saber das novidades antes delas acontecerem.
Sou malandro dos malandros, mas vi poucos caras como Zião da Gameleira.
Que já vem de volta, enquanto a gente está indo. Boto o maior
respeito nesse bicho ma. cumbeiro. Uns dois anos e meio aqui e
me apareceu Laércio Arrudão. Duas semanas depois, "a grana correndo
por mim lá fora, ganhei um alvará de soltura.
Paulinho duma Perna Torta pisa o meio-fio da Avenida Tiradentes
e é fotografado. Mas não liga aos tontos da crónica policial que
estão à sua roda. Espera um táxi. Está com a grana, saiu de casa
com a cobiça raiada. São Paulo ia ser meu.
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