Extraído
de Fome.
Edição do Círculo do Livro.
Naquele
tempo, com a barriga na miséria, eu vagava pelas ruas de
Cristiania, cidade singular, que deixa marca nas pessoas...
Em minha água-furtada, estirado e sem dormir, escutei um
relógio dar seis horas, lá embaixo. Era dia claro,
pessoas começavam a circular pela escada. Junto à
porta, o quarto estava atapetado com velhos números do
Morgenhladet. Eu podia ler distintamente o aviso do diretor dos
Paruis e, um pouco à esquerda, vasto, rechonchudo, o anuncio
de pão fresco, do padeiro Fabian Olsen.
Logo arregalei os olhos e, na forma do velho costume, comecei
a matutar se teria um motivo qualquer para regozijar-me. Andara
um pouco apertado nos últimos tempos; uma apôs outra,
minhas roupas tinham ido parar no prego; tornara-me nervoso, suscetível;
duas ou tres vezes, também, passara o dia inteiro na cama,
em estado vertiginoso. De tempos em tempos, quando a sorte me
sorria, eu pudera, no maximo, arranjar cinco coroas por um folhetim
nesse ou naquele jornal.
O dia avançava, e comecei a ler os anúncios nas
imediações da porta. Podia perceber até as
letras finas e tortas de Mortalhas - na loja da Srta. Andersen,
à direita, junto à porta principal. Gastei bastante
tempo nisso; o relógio, embaixo, deu oito horas antes que
me levantasse para vestir-me.
Abri a janela e olhei para fora. A vista incidia sobre um varal
de roupa e um terreno baldio; bem na ponta, onde se incendiara
a oficina de ferreiro, operários retiravam do entulho uma
fornalha arruinada. Debrucei-me na janela e examinei o céu.
O dia seria esplendido, sem duvida. Estávamos no outono,
estação delicada e fresca, em que as folhas mudam
de cor, e passam desta para a melhor, Começara a algazarra
na rua, e o barulho me atraia para fora. Aquele quarto lúgubre,
com o soalho balançando a cada passo, parecia antes um
caixão desconjuntado. Não havia fechadura direita
na porta, nem lareira no quarto. Acostumara-me a dormir em cima
das meias, para que elas ficassem mais ou menos secas no dia seguinte.
O único objeto com que poderia distrair-me era uma cadeirinha
vermelha, de balanço, na qual me instalava à noite
para cochilar, cismando em coisas e coisas por aí além.
Se o vento batia forte, e as portas, lá embaixo, estavam
abertas, ouvia-se toda sorte de assobios estranhos através
do soalho e dos tabiques. E ali, junto da porta, buracos do tamanho
de um punho se abriam no Morgenbladet.
Ergui-me e fui para o vão da cama inspecionar um pacote,
a procura de alguma coisa para almoço; não achei
nada, e voltei a janela.
"Será
que adianta procurar emprego?", dizia comigo. As inúmeras
recusas e meias promessas, o "não" seco e repetido,
esperanças alternadamente acariciadas e desfeitas, novas
tentativas que sempre davam em nada - tudo isso me aniquilara
o animo. Por ultimo, pleiteara um lugar de cobrador, mas cheguei
tarde, e, alem do mais, não dispunha de cinqüenta
coroas para a fiança. Sempre esse ou aquele obstáculo.
Também me apresentei ao Corpo de Bombeiros. Éramos
uns cinqüenta homens no pátio, estufando o peito para
dar impressão de força e valentia. O inspetor passou-nos
em revista, examinando os candidatos; apalpava o braço
de cada um e fazia perguntas. Diante de mim, passou firme, limitando-se
a sacudir a cabeça e a dizer que me recusava por causa
dos óculos. Apresentei-me outra vez, sem óculos,
com sobrancelhas franzidas, olhos agudos que nem facas, e de novo
o homenzinho passou firme diante de mim, a sorrir. Deve ter-me
reconhecido... O pior e que minha roupa chegara a um estado tão
miserável que eu já não podia ir decentemente
a nenhuma parte.
A regularidade, o movimento uniforme com que ia, constantemente,
deslizando ladeira abaixo! Acabei ficando tão extraordinariamente
desprovido de tudo, que não me restava sequer um pente,
um livro para ler, quando a vida se tornava demasiado triste.
Durante todo o verão vagueei pelos cemitérios ou
no Parque do Castelo; me abancava e escrevia artigos para os jornais,
colunas e mais colunas, sobre as coisas mais diversas: invenções
estranhas, maluquices, fantasias de cérebro agitado. Em
desespero, escolhia freqüentemente os assuntos menos atuais,
que me custavam longas horas de esforço e nunca eram aprovados.
Acabado o artigo, atacava outro, e raramente me desencorajava
pelo "não" dos redatores-chefes; dizia sempre
a mim mesmo que acabaria vencendo. E, de fato, se estava de veia
e o artigo saia bem-feito, acontecia-me receber cinco coroas pelo
trabalho de uma tarde.
Tornei a aproximar-me, deixei a Janela, dirigi-me à cadeira
que me servia de toalete. Passei um pouco de água nos Joelhos
brilhantes das calças, para escurece-los e dar-lhes um
ar mais novo. Feito isso, como de costume, botei papel e lápis
na algibeira, e sai. Deslizei no maior silêncio pela escada,
não fosse despertar a atenção da dona da
casa; o aluguel se vencera ha dias, e eu não tinha com
que paga-lo.
Eram nove horas. O rumor de carros e vozes enchia o ar, imenso
coro matinal, onde se fundiam passos de transeuntes e o estalar
de chicote dos cocheiros. Esse tráfego barulhento em todas
as direções logo bastou para que, eu recuperasse
energia; comecei a sentir-me gradativamente mais satisfeito da
vida. Nada me interessava menos que um simples passeio sob o ar
fresco da manha. Que importava o ar aos pulmões? Sentia-me
forte como um gigante; era capaz de parar um carro com o peito.
Apossou-se de mim um sentimento estranho e delicado, o sentimento
de toda essa alegre despreocupação. Comecei a observar
as pessoas com quem cruzava ou que ultrapassava; ia vendo os cartazes
nos muros, recolhendo a impressão do olhar que alguém
me lançava de um bonde em movimento; penetravam-me as coisas
mais insignificantes, todas as miúdas contingências
que cruzavam no caminho e desapareciam.
Se pelo menos eu tivesse um pouco de comida, em dia tão
lindo! Subjugava-me a sensação dessa alegre manhã.
Incapaz de refrear a alegria, comecei a cantar de felicidade,
sem motivo preciso. Parada a porta do açougue, uma pobre
mulher, de cesto no braço, matutava sobre as salsichas
para o almoço; olhou-me, quando passei perto. Só
tinha um dente na boca. Com os nervos a flor da pele, como ficara
nos últimos dias, o rosto daquela mulher, de repente, me
despertou uma sensaço desagradável. O dente
amarelo, comprido, parecia um dedinho que lhe saísse do
maxilar, e seu olhar ainda estava repleto de salsichas quando
se voltou para mim. Num instante, engulhado, perdi o apetite.
Chegando ao Mercado de Carne, fui ao chafariz beber água.
Levantei os olhos: eram dez horas na torre da Igreja de São
Salvador.
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