Por
José Castello
Texto
publicado no jornal O Estado de São Paulo,
10 de Dezembro de 2000
Ernest
Hemingway foi um escritor que trabalhou , sempre na borda entre
a literatura e o jornalismo. E que viu sempre a si mesmo como
um macho premido entre a valentia e a queda. Não foi por
outra razão, provavelmente, que acabou se suicidando, com
um tiro na cabeça, aos 62 anos incompletos; a morte celebrada
para eliminar o conflito sem fim. Entre seus livros, o caso mais
célebre dessa intersecção entre mundos opostos
é Por Quem os Sinos Dobram; romance inspirado em
sua experiência como jornalista durante a Guerra Civil Espanhola.
Também este Verdade ao Amanhecer, romance póstumo
que só agora nos chega, é fruto direto dos paradoxos
de uma experiência real: o último safári que
Hemingway, um apaixonado por aventuras, grandes riscos e outros
emblemas da masculinidade, realizou no Quênia. Escrito em
1953, oito anos anos antes de sua morte, o livro exerce também
a função de testamento precoce. Só foi publicado
em 1999.
Verdade
ao amanhecer é, antes de tudo, um relato a respeito
do modo brutal, às vezes irônico, em geral apaixonado,
com que Ernest Hemingway se aproximou do inóspito continente
africano. É verdade que, mesmo quando, anos depois, escreveu
sobre a França (Paris é uma Festa), ele continuou
a ver o mundo como um território de selvagerias - ainda
que deformadas pelos protocolos da elegância parisiense.
Também no Quênia, ele se movimentou com a postura
desbravadora do repórter aventureiro, o destempero do apaixonado
e a elevação do ficcionismo. Esse elo obsessivo
com a realidade é, ao mesmo tempo, a marca e o limite da
literatura de Hemingway - e talvez tenham sido também as
fronteiras do homem Ernest. Ele se atrela à vida, suga
do real um sumo cuja existência poucos chegamos sequer a
perceber; no entanto, isso parecia às vezes sufoca-lo,
até imobiliza-lo; em outros momentos, é inevitável
pensar se tal apego, quase embriaguez com os fatos (e Hemingway
foi, de fato, um alcoólatra), não foi só
o avesso de uma imaginação limitada - e muitos críticos
respeitávels, como Harold Bloom, já, trabalharam
com esta. hipótese.
Hermingay passou uma parte importante de sua vida de adulto na
África Oriental. Foi um incorrigível curioso. No
cotidiano da selva africana, teve a chance de reforçar
a autoimagem de homem valente, sempre pronto para um desafio.
Os primeiros capítulos de Verdade ao Amanhecer não
são de compreensão fácil para quem desconhece
o que se passou no Quênia entre os anos de 53 e 54: a revolta
desencadeada por Jomo Kenyatta, um negro africano bem educado
e casado com uma inglesa que, ao regressar para sua terra natal,
desencadeou a rebelião dos trabalhadores rurais negros
contra os fazendeiros europeus, conhecida como Mau-Mau. Nesse
ambiente ameaçador, Pop, um caçador famoso entrega
a Hemingway a chefia da área de caça de seu safári.
Mesmo momento em que os Mau-Mau decidem atacar a área .
Á espera da luta inevitável, Mary, mulher de Hemingway,
se dedica á caça de um leão. É a distração
que consegue ter para aliviar também os horrores de um
casamento infeliz.
Vale recordar que, em 52, Hemingway lançara O Velho
e o Mar, romance que motivou o Nobel de Literatura que receberia
dois anos depois. Seis anos mais tarde, ele ainda reuniria suas
reminiscências francesas em seu célebre Paris
é uma Festa. No ano seguinte, já à beira
da psicose, numa sucessão de atos cada vez mais radicais,
Cometeria o suicídio. Quando se transferiu para o Quênia,
em janeiro de 54, transformando-se em guardião honorário
de caça do território de Kimana Swamp, tentava,
ainda uma vez, emprestar heroísmo à sua vida. Entre
outras peripécias, experimentou um célebre desastre
de avião, do qual teria sido resgatado sacudindo uma garrafa
de gim e gritando: "Ando tendo muita sorte". Vencer
aquilo que o ultrapassava era o grande prazer de Hemingway, e
foi com esse ímpeto de herói que ele sempre escreveu.
Seu filho Patrick, que assina a introdução, montou
os originais de Verdade ao Amanhecer à partir de
um manuscrito (sem título) de cerca de duzentas mil palavras
que, ele avaliou - "certamente não é um diário"
-, daí ter decidido publicar como um "romance".
"Metade do que se vai ler é ficção",ele
trata de advertir os leitores, sem indicar: contudo, que metade
é essa. E talvez não seja mesmo uma metade que se
possa separar .Relato biográfico, mas a cada linha transformado,
excedido, ornamentado pela mente esfogueada de Hemingway, um escritor,
ao contrário da avaliação dos críticos,
de grande imaginação, sim, só que com uma
imaginação contaminada mortalmente pelo real. O
grande instrumento, que Hemingway manipula com rara desenvoltura,
é este abismo entre a palavara e os fatos - selva que não
é para qualquer aventureiro.
Hemingway deixou o manuscrito de Verdade ao Amanhecer pelo
meio, e jamais o retomou. Talvez temesse chegar a um desfecho
que o contrariasse, ou que desmentisse suas próprias ilusões
de heroísmo.Também o suicídio pode ter sido
uma maneira de interromper os fracassos inerentes à decadência
física. Ambos resultaram numa reafirmação
de sua célebre sentença segundo a qual o homem
não foi feito para a derrota.
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