Extraído
de O Velho e o Mar
Editora Civilização Brasileira, 1958
"Mas
tenho de matá-lo", murmurou o velho. "Em toda
a sua grandeza e glória. Embora seja injusto. Mas vou mostrar-lhe
o que um homem pode fazer e o que é capaz de agüentar.
Eu disse ao rapaz que era um velho muito estranho. Agora chegou
a hora de prová-lo."
Os milhares de vezes que já o demonstrara não significavam
nada. Agora ia prová-lo de novo. Cada vez era uma nova
vez e quando o estava fazendo o velho nunca pensava no passado.
"Gostaria que ele dormisse umas horas, para que também
eu pudesse dormir e sonhar com os leões", pensou o
velho. "Por que é que os leões serão
sempre a parte mais importante dos meus sonhos e a recordação
que parece ter ficado mais profunda em minha memória? Não
pense mais, velho", disse de si para si. "Descanse um
pouco encostado à madeira do banco, e não pense
em coisa alguma. Agora é o peixe que está trabalhando.
Você, peixe, trabalhe o menos que puder."
Já se estava fazendo tarde e o barco continuava a avançar
lenta e seguramente. Mas agora o peixe também tinha de
lutar contra a brisa do nascente e o velho era transportado sobre
pequenas ondas e com a linha atravessada aos ombros, a qual agora
o magoava menos.
Uma vez, durante a tarde a linha começara de novo a erguer-se.
Mas o peixe continuara a nadar normalmente, embora a um nível
um pouco mais elevado. O sol batia agora no braço, no ombro
direito e nas costas do velho. Por isso ele sabia que o peixe
virara para nordeste.
Agora, que já o tinha visto uma vez, podia imaginar o peixe
nadando com as suas barbatanas peitorais, purpúreas e abertas
como duas asas imensas, e a imponente cauda, ereta, cortando a
escuridão das águas. "A que distância
poderá ele ver naquela escuridão?" pensou o
velho."Tem os olhos enormes, e um cavalo, com olhos muito
mais pequenos, pode ver bastante bem no escuro. Antigamente eu
também via bastante no escuro. Não numa escuridão
completa, naturalmente. Mas quase tão bem como um gato."
O sol e os movimentos regulares dos dedos tinham afastado a cãibra
completamente e já conseguira recuperar o uso da mão
esquerda. Passou um pouco do esforço para essa mão,
distendendo os músculos das costas para aliviar a dor que
a linha lhe provocava.
- Se ainda não está cansado, peixe, disse em voz
alta, você é na verdade um peixe muito estranho.
Sentia-se agora muito cansado e sabia que a noite se aproximava
e procurava pensar noutras coisas. Pensou nas Ligas principais
-para êle eram as Gran Ligas. Sabia que os Yankees de Nova
York enfrentavam nesse dia os Tigers de Detroit.
"Este é o segundo dia em que não sei os resultados
dos. jogos", pensou. "Mas preciso ter confiança
e ser digno do grande DiMaggio, que faz tudo com perfeição
mesmo com a dor da espora do osso no calcanhar. O que será
uma espora do osso? Una espuela de hueso. Nós não
temos disso. Será tão doloroso como a espora de
um galo de briga cravada num calcanhar? Não creio que mesmo
DiMaggio pudesse agüentar a perda de um olho ou de ambos
os olhos e continuar a lutar como o fazem os galos de briga. O
homem não vale lá muito comparado aos grandes pássaros
e animais. Eu por mim gostaria muito mais de ser aquele peixe
lá embaixo, na escuridão do mar."
- Exceto se aparecerem tubarões, disse em voz alta.Se aparecer
em tubarões, que Nosso Senhor tenha piedade dele e de mim.
"Será que o grande DiMaggio poderia aguentar um peixe
durante tanto tempo como o que eu vou levar para aguentar este?
Tenho a certeza de que poderia, e até talvez melhor, pois
é jovem e vigoroso. E também porque o pai dele era
um pescador. Mas talvez a espora do osso o magoasse demasiado."
-Não sei, nunca tive uma espora do osso como ele.
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