Extraído
de Um parque de diversões da cabeça
L&PM editores, 1984.
Estou
levando uma vidinha mansa no bar do Mike o dia inteiro sacando os campeões
de bilhar do salão do Dante e os viciados em fliperama.
Estou levando uma vidinha mansa na zona leste da Broadway.
Sou americano.
Fui um garoto tipicamente americano.
Li a revista do Garoto Americano e virei escoteiro nos subúrbios.
Pensei que era Tom Sawyer pescando pitu no rio do Bronx e me imaginando
no Mississippi.
Tive uma luva de baseball e uma bicicleta American Flyer.
Distribuía o Woman's Home Companion às cinco da tarde ou o Herald Tribune
às cinco da manhã.
Ainda posso ouvir o baque do jornal caindo em alpendres esquecidos.
Tive uma infância infeliz.
Vi lindberg aterrar.
Olhei para minha terra natal e não vi anjo nenhum.
Fui pego roubando lápis num bazar barato no mesmo mês que fui promovido
a Escoteiro-Chefe.
Derrubei árvores para o Departamento de Agricultura e sentei so bre
elas.
Desembarquei na Normandia num barco a remo que virou.
Vi exércitos refinados na praia em Dover.
Vi pilotos egípcios em nuvens púrpura.
Lojistas enrolando seus toldos ao meio-dia
salada de batatas e dente-de-Ieão em piqueniques anarquistas.
Estou lendo "lorna Doone"
e uma biografia de ]ohn Most terror dos industrialistas com uma bomba
sempre na escrivaninha.
Vi lixeiros desfilarem na parada do dia de Colombo atrás dos corneteiros
barulhentos e desinibidos.
Não visito a clausura dos Mosteiros faz tempo nem tampouco as Tulhas
mas continuo pensando em ir.
Vi o desfile dos lixeiros enquanto nevava.
Comi muito cachorro-quente frio nas feiras.
Ouvi o Discurso do Gettysburg
e o Discurso do Ginsberg.
Gosto daqui e nem penso em voltar para donde vim.
Também eu viajei em vagões de carga vagões de carga vagões de carga.
Viajei entre homens desconhecidos.
Estive na Ásia.
com Noé na Arca.
Estava na índia quando Roma foi construída.
Visitei a Manjedoura com o Burro.
Vi o Eterno Distribuidor do White Hill
Ao sul de San Francisco
e a Mulher-que-Ri no Loona Park
do lado de fora da Tenda das Gargalhadas sob a tormenta
mas sempre rindo
tenho ouvido o som dos folguedos à noite.
Tenho perambulado solitário como as multidões.
Estou levando uma vidinha mansa nas redondezas do bar do Mike todos
os dias vendo o mundo cruzar em seus curiosos sapatos
Certa vez iniciei uma caminhada em torno do mundo mas desisti no Brooklyn
Aquela ponte foi demais para mim.
Já tentei o silêncio
o exílio e a astúcia.
Voei muito próximo ao sol
e minhas asas de cera se derreteram.
Estou procurando pelo meu Velho que jamais conheci.
Estou procurando pelo Líder Perdido com quem voei.
Os jovens deveriam ser exploradores.
O lar é o ponto de partida.
Mas Mamãe nunca me preveniu que haveria cenas como essas.
Útero ulterior estou farto dele
Tenho viajado.
Estive numa cidade fantasma.
Perambulei entre multidões múltiplas.
Ouvi Kid Ory choramingar.
Ouvi o sermão de um trombone.
Ouvi Debussy filtrado por um lençol.
Dormi numa centena de ilhas onde os livros eram árvores.
Ouvi pássaros ressoando como sinos.
Usei velhas calças de flanela e caminhei pela praia do inferno.
Busquei abrigo numa centena de cidades onde as árvores eram livres.
Que metrôs que táxis que cafés!
Que mulheres com cegos seios
membros perdidos entre arranha-céus!
Tenho visto estátuas de heróis nos entroncamentos.
Danton lacrimejando na entrada do metrô Colombo em Barcelona
apontando para Oeste, pros lados de Ramblas em direção ao American Express
Lincoln no seu trono de rocha
E um enorme Rosto de Pedra no Dakota do Norte.
estou sabendo que Colombo não inventou a América.
Ouvi uma centena de Ezra Pounds amestrados
Acho que todos eles deveriam ser soltos.
Já se passou muito tempo desde que fui pastor
Agora levo uma vida mansa no bar do Mike diariamente lendo os
Classificados.
Li as Seleções de Reader's Digest de cabo a rabo
e notei a perfeita identificação entre os Estados Unidos e a Terra Prometida
já que em todas as moedas está impresso CONFIAMOS EM DEUS
mas nas notas do dólar não é inscrição alguma porque são deuses elas
próprias.
Leio diariamente a seção Precisa-se em busca de uma pedra uma folha
uma porta esquecida.
Ouço a América cantar nas Páginas Amarelas.
Quem diria a alma também tem crises.
Leio os jornais todos os dias e noto os equívocos da humanidade
e o excesso lamentável de artigos impressos.
Vejo que o lago de Walden foi drenado para que se construísse
um parque de diversões.
Vejo que estão fazendo Melville comer sua baleia.
Vejo também que uma nova guerra vem aí mas não serei eu quem vai lutar
nela.
Li os grafites nas paredes das privadas.
Ajudei Kilroy a escrevê-los.
Marchei pela Quinta Avenida acima tocando clarim num severo pelotão
mas me mandei correndo pra Casbah procurando por meu cão.
Noto alguma semelhança entre os cães e eu.
Cães são os verdadeiros observadores percorrendo os quatro cantos do
mundo
e a região de Molloy.
Cruzei becos estreitos demais para Galaxies.
Vi centenas de carroças de leite sem cavalos num terreno baldio em Astória.
Ben Shahn jamais as pintou mas elas estão lá retorcidas no Astória
Escutei o Ohhligúto do Bicho Louco.
Percorri super-auto-estradas
e acreditei na promessa dos cartazes
Cruzei as planícies de Jersey e vi as cidades da planície
E chafurdei nos ermos de Westchester entre bandos de nativos nômades
em seus carroções.
Eu os vi.
Eu sou o homem.
Eu estive lá.
Eu sofri um pouco.
Eu sou americano.
Tenho passaporte.
Não sofri em público.
Sou jovem demais para morrer.
Sou um homem que se fez a si próprio.
Sou um selfmadman.
E tenho planos para o futuro.
Estou na fila à espera dum emprego de primeira.
Talvez me mude pra Detroit.
Por enquanto vou me virando como vendedor de gravatas.
Sou um Zé Ninguém.
Mas no fundo um bom sujeito.
Sou um livro aberto pro meu patrão.
Sou um mistério impenetrável pros meus amigos mais íntimos.
Vou levando essa vida mansa no bar do Mike o dia inteiro contemplando
o umbigo.
Sou uma parte da longa loucura do corpo.
Tenho vagueado por bosques noturnos.
Tenho me amparado em umbrais embriagados.
Tenho escrito histórias frenéticas sem pontuação.
Eu sou o homem.
Eu estive lá.
Eu sofri um pouco.
Sentei em cadeiras de cansaço.
Sou uma lágrima do sol.
Sou a colina pela qual os poetas trepam.
Inventei o alfabeto depois de observar o vôo das garças que faziam
letras com as pernas.
Sou um lago na planície.
Uma palavra numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Uma blitz no inarticulado.
Sonhei que todos os meus dentes caíram mas a língua sobreviveu para
contar a história.
Porque sou um silêncio poético.
Sou um banco de canções.
Sou o pianista de um cassino abandonado numa colina à beira-mar em meio
ao nevoeiro
mas sempre a tocar.
Vejo certa semelhança
entre a Mulher Que Ri e eu.
Ouvi o som do verão sob a chuva.
Vi garotas em plataformas de madeira com estranhas sensações.
Compreendo suas hesitações.
Sou um colhedor de frutas.
Já percebi como os beijos provocam euforia.
Corro o risco de ficar encantado.
Vi a Virgem sob uma macieira em Chartres.
E Santa Joana ardendo em Bella Union.
Vi girafas na jangal
seus pescoços como o amor entrelaçados nas circunstâncias férreas deste
mundo.
Vi Vênus Afrodite sem braços em seu corredor ventoso.
Ouvi o lamento da sirene na Quinta Avenida.
Vi a Deusa Branca bailando na Rue des Beaux Arts
no Dia da Independência
e a Bela Dama Sem Compaixão com um dedo no nariz em Chumley's.
Ela não falava inglês.
Tinha o cabelo loiro e a voz rouca e nenhum pássaro cantarolava.
Vou levando uma vida mansa no bar do Mike todos os dias sacando
os jogadores de bilhar lambuzando a cena com minestroni e devorando
macarrão
e li em algum lugar
o Significado da Existência
mas esqueci exatamente onde.
Mas eu sou o homem
E eu estarei lá.
E talvez possa despertar os lábios daqueles que
ainda dormem.
E
talvez transforme meus papéis em folhas de relva.
E talvez ainda escreva meu anônimo epitáfio
instruindo aos cavaleiros
que passem.
Textos
de Lawrence Ferlinghetti
Ferlinghetti
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Autobiografia
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