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Carl Solomon - Jogando ping-pong com o abismo

Por José Thomaz Brum, verão de 1985.
Da introdução do livro: De repente acidentes
L&PM editores.

Carl Solomon. Para os que leram "Howl" isto soa apenas como um nome ou um personagem. Mas Carl Solomon existe, escreve e, sob muitos aspectos, é o "núcleo secreto do movimento beat".

Nascido em 1928, no Bronx, em Nova York, de uma família judia descendente de imigrantes, Carl Wolfe Solomon teve uma infância marcada pela figura patriática do pai, Morris Solomon, que obrigava o filho a saudar a bandeira americana sempre que passava por uma. Apesar disso, entre jogos de beisebol e pescarias, a vida era tranquila na casa vermelha da Prospect Avenue. Com a morte do pai, em 1939, Solomon experimentou um "sentimento de perda" e uma "sensação de incerteza" que o jogaram para longe das influências conservadoras. Entra na Marinha aos 17 anos. Em tempo de guerra, os uniformes "assentavam bem em qualquer um". Solomon na União Marítima Nacional. Ginsberg e Kerouac na Marinha Mercante. Álcool, sexo e viagens.

Viagens marítimas são deslocamentos onde o inteiramente outro transborda as esquinas mesquinhas de bairros, cidades, países. Em 1947, desembarca na França e ingressa no Partido Comunista Francês, ato que equilibra a balança da sua infância reacionária. Reações extremas.

Panorama francês do pós-guerra: dissolução do sentido, fervilham experimentos éticos, estéticos: existencialismo, ecos surrealistas. O Ocidente purga seus pecados racionais. Eclipse. Solomon presencia tumultos surrealistas, assiste a peças de Genet e, em uma noite quente de julho, perambulando por St. Germain de Prés à procura de existencialistas, encontra um grupo do lado de fora de uma pequena galeria na esquina da rua Jacob. Aproxima-se e lá está alguém de timbre alucinatório vociferando: "Papa, maman et pederaste inné". Era Antonin Artaud. Solomon fica fascinado e enche a bagagem com a fina flor da poesia maldita: "Ci-Git", "Chants de Maidoror", " Pompes Funebres " e os livros de Henri Michaux. Em 1948, voltando à França, traz "Van Gogh, Le Suicidé de ia Societé", de Artaud. Toda essa salada francesa de temperos fortes foi o que Solomon ofereceu aos amigos beats.

Entre uma e outra salada dada de batata atirada em um conferencista que falava sobre Mallarmé, Solomon chega aos vinte e um anos e se apresenta ao New York State Psychiatric Institute, solicitando "eletrocussão imediata", já que tinha idade para isso. Ele queria ser "suicidado". Artaud ao pé da letra.

Após este episódio, Solomon começa a experimentar na carne aquele vazio do qual falaram Artaud e seus discípulos. É o pingue-pongue com o abismo, a "descida aos infernos" de que fala William Carlos Williams no prefácio a "Howl" .

Em um certo dia de 1949, no Columbia Psychiatric Institute, acordando após o tratamento de choque por insulina, Solomon vislumbrou um novo paciente: "eu sou Kirilov", murmurou Solomon, amável. "Eu sou Myschkin", foi a resposta de Allen Ginsberg. Através dos subterrâneos de Dostoiévski acontecia um encontro fundamental para a beat generation. Os dois ficaram logo amigos e começaram a se encontrar, na enfermaria, para escrever e ler em voz alta um para o outro. Solomon introduziu Ginsberg a Artaud, Genet e aos surrealistas. Ginsberg, por sua vez, falava sobre seus amigos Kerouac, Burroughs, Cassady.

Ginsberg tomava nota de tudo o que Solomon dizia, transcrevia suas "histórias apócrifas". Dessas notas mescladas de verdade e ficção surgiu o poema "Howl (Uivo)". Verdades, delírios, velocidades misturadas. O futuro herói de "Howl" é liberado alguns dias antes do Natal de 1949. Aluga um apartamento sem água quente na West Seventeen Street e, a conselho de um Ginsberg entusiasmado, dá uma festa para celebrar a metade do século - 1950. Presenças: Kerouac, Cassady, Ginsberg. Complô beat. Cassady tocou ocarina e produziu o seu fluxo costumeiro de palavras alta-tensão. Kerouac maravi1hado com Genet. Beat - trama.

Solomon, pouco depois, conquista uma hóspede, Olive Blake. Casam-se e, em 1952, divorciam-se. Enquanto isso, nessa época, Ginsberg tinha se tornado um agente para os amigos, tentando publicá-los. Solomon é contratado por seu tio A. A. Wyn, editor da linha encadernada Wyn Books e das brochuras Ace. Ginsberg pensa que Wyn poderia lançar seus amigos. O máximo que acontece é a publicação de "Junkie", encadernado e colado a um livro de um agente de narcóticos, com censuras anotadas quanto ao conteúdo. As tentativas com os trabalhos de Kerouac fracassam.

Por volta de 1956, o ano da publicação de "Howl", Solomon sofre nova recaída e é hospitalizado no Pilgrim State Hospital, em Long Island. Mesmo internado, Solomon continua a se corresponder com Ginsberg, Burroughs e William Carlos Williams. Este lembra a ele: "a vida não acaba em um dia". Mas Solomon, cujas proezas e aventuras inspiraram o mais famoso poema da beat generation, se sentia um "poeta extinto", ao contrário do "poeta distinto" - que era como Allen Ginsberg o apresentava. Seus escritos, memórias e flashes intensos foram reunidos sem ordem cronológica e editados sob a forma de "Mishaps, Perhaps" e "More Mishaps", por Mary Beach, em 1966 e 1968, respectivamente.

Em meio a piadas, trocadilhos (procedimento que desenvolveu a partir da leitura de Michaux), pequenas histórias, cartas e poemas, está um ensaio que pode ser considerado a sua obra-prima: "Relato do Asilo: reflexões de um paciente após o choque". Este texto, escrito de maneira cuidadosa e rigorosa, é o seu "testemunho relativo à enfermidade". Em uma entrevista concedida a John Tytell em 1974, Solomon disse que ainda o considera "a mais clara exposição das minhas idéias". Tendo aparecido, pela primeira vez, na antologia "The Beat Generation and the Angry Young Man", de Gene Feldman e Max Gartenberg, ele é a chave para a compreensão da obra de Solomon.

Como falar, de uma maneira precisa e não médica, da fragmentação resultante do tratamento de choque? Solomon conseguiu. Seus textos travessos, ímpios e raivosos brincam até mesmo com a aura mitológica criada em torno dos beats. Espírito aforístico e gnômico, Solomon possui o dom para o absurdo e o nonsense que o contato com o surrealismo e o dadaísmo lhe legou. Preso à linguagem, sufocado de cultura, mesmo assim ele ri, um riso rabiscado, quebrado, fragmentado.

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