Extraído
de A noite dos cristais
Editora 34, 2000.
Minha
avó Ombutchê era da nação nagô e de uma velhice milenar como a
própria África. Era animista e possuía ainda os modos e costumes
de seu povo; comia em uma cuia com as mãos e andava sempre descalça,
fumando seu cachimbinho de barro; vivia no chão, lá no seu canto,
sentada em uma das esteiras que ela mesma fazia. Desejava a morte
aos brancos e caducava ao mesmo tempo. De seu canto, fumando o
eterno cachimbo, via um passado longínquo, nebulosas imagens que
vinham através da fumaça. Cuspia no chão e ruminava pensamentos,
apertando os olhos para ver mais longe. Quanto mais pensava mais
revia, mais cuspia e mais fumava. Via sempre uma menina preta
como azeviche que corria nas savanas, saltando como as gazelas
vermelhas. Um dia aquela menina foi buscar água no rio e nunca
mais voltou. Foi laçada por dois homens, um preto que ria e bebia
fartamente de uma garrafa fazendo horrendas caretas, e outro,
tão estranho, com olhos de azul do céu e barbas douradas do sol.
Foi levada junto com outros cativos para o castelo de Huidá. Ali
chegavam navios carregados de pólvora, ferros, panos coloridos,
aguardente (muito apreciada pelo rei), armas de fogo, fumo de
corda e várias quinquilharias.
Feita a troca, foi colocada em um navio e chegou ao Brasil. Muitos
morreram no caminho e junto com os doentes foram jogados ao mar.
Foi comprada na chegada. Trabalhou no eito com o fumo que era
para semear, plantar, alimpar, capar, desolhar, colher, espinicar,
torcer, virar, juntar, enrolar e pisar e todas as disposições,
leis, resoluções, decretos, avisos, patentes e recomendações sobre
o precioso produto eram tomados por lustrosos senhores do Tribunal
da Junta da Administração do Tabaco.
Plantou cana e fumo -milho e mandioca para sobreviver.
Conheceu o homem de sua vida Impôke, testículos grandes, e com
ele fez muitos filhos: Duro Orike, sobrevive e goza a vida; Jokotimi,
fique comigo; Bamitale, fique comigo para sempre; Igbekele, esperança
assegurada; Vil Vomã, destemido; Yetunde, mamãe voltou; Komolu,
a morte agarrou o herói; Babatunde, papai voltou; Akin, guerreiro
corajoso; Binharame, o enjeitado; Nhambai, gazela vermelha; Adjlor,
oradora; Kanhorola, camaleoa; Megbea, lenta; N'apote, coxas grandes;
Djumôkere, pulso forte; Kassukai, adolescente; e o passageiro
Thôna, hóspede.
Os nomes homenageavam a natureza, mas Ombutchê, que teve filhos
perfeitos, era castigada pela natureza, a humana.
Não criava nunca seus filhos, mal começavam a andar eram toma
dos e vendidos. Suplicava para que não lhe fizessem aquilo, implorava,
gritava, ajoelhava e se conformava.
Desejava que eles nunca andassem, desejava que eles morressem,
desejava que não nascessem. Tomava os chás de ervas que as antigas
lhe ensinavam, ia para a mata com suas dores, agarrava-se a um
tronco, gemia, suava e chorava em cólicas. O sangue vinha quente
em golfadas, e aquela massa de carne informe rolava pelo chão.
Depois, na escuridão da sanzala, ruminava orações chamando Omolú
para a vingança, ele vinha, ela apavorada, se agarrava a Impôke,
trançavam suas pernas e faziam outro filho.
Pensava ser castigo do irado deus dos brancos e, para aplacar
a sua ira, pôs em seu derradeiro filho um nome cristão, Flora
Maria, minha mãe.
Um dia Inpôke partiu para acompanhar um tropa pelo sertão e nunca
mais voltou. Falavam em febres, onças, picadas de cobras ou flechadas
dos gentios.
Sobrou para ela somente aquela filha; então trabalhou muito mais
e quando já estava velha e sem forças foi dispensada.
- Vai mulé, vai e leva a tua fia
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