por
Alberto da Costa e Silva
Extraído
de Terra sonâmbula
Nova Fronteira, 1995.
Este
é um romance de cavalaria Feérico e estonteate, como os melhores
do género Se sua ação transcorre em nosso tempo e em Moçambique,
num Moçambique de Mia Couto, limitado pelo Índico sem fim, o sertão
também infinito, a tragédia e o sonho, não lhe faltam, dos livros
de cavalaria, a paisagem misteriosa (que viaja continuamente,
a passar pelos homens, e continuamente se transforma, para assombro
de seus olhos, de chameca em floresta, de floresta em savana e
de savana em pântanos e praia), nem as aventuras em que se põem
à prova a inteligência, a coragem, a fé e a vontade.
Dele
tampouco estão ausentes as tentações do Diabo e da Morte, da Carne,
da Fome, da Peste e da Guerra, nem os mundos escondidos com os
dragões que os guardam, nem a busca obsessiva de um graal, de
uma fonte, de um menino fugido ou de um jardim encantado, que
já se sabe, à partida, que não se vai encontrar.
Tudo
isso, que se inclui na tradição da narrativa e que Mia Couto recebeu
com a língua portuguesa, chega-nos banhado pela luz e pelas sombras
das Áfricas visíveis e das Áfricas secretas ou imaginadas, de
um continente onde nada se tem por inanimado, onde se espera 0
infinito ao alcance da mão, onde um menino pode transformar-se
em galo e um novilho em garça (sem aquele deixar de ser menino
e o outro, boi), onde os vivos compartem o mesmo espaço com os
mortos, os deuses e os espíritos da natureza, e onde são antigas
e múltiplas as técnicas de transformar a vida em estórias, conforme
aprendemos no Decameron Negro de Frobenius e na Antologia
Negra de Blaise Cendrars
De
cada página deste romance de Mia Couto sobem murmúrios e cochichos,
como se o húmus da terra nos quisesse ditar os seus mistérios,
enquanto se desenrolam, em círculo, duas peregrinações de cavaleiros
andantes, uma inscrita na outra, mas tendo centros diferentes,
de modo que suas circunferências acabam por tocar-se num ponto
que, sendo destino, é também recomeço, pois Mia Couto sabe que
sua dupla odisséia não termina jamais E porque a desenvolveu como
se fosse um contador tradicional de estórias, nela insere numerosos
relatos pequeninos - as fábulas e os apólogos que iluminam a trama
das viagens e são como radículas a se separarem da raiz principal,
antes de novamente a ela se unirem, no rumo daquele mundo subterrâneo,
"onde mora 0 primeiro dos mortos", e que equivale, em
grande parte da África, ao céu mediterrânico, riscado pelo Olimpo
ou pelo monte Sinai As iras da guerra civil, a crueldade dos campos
de deslocados e a prepotência dos que se julgam donos do hoje
e da história, assim como a certeza de que os heróis só têm .por
posse o medo, reforçam em Mia Couto o querer recompor o mundo,
um querer de intensidade semelhante ao daquele homem que passou,
numa de suas parábolas, incontáveis anos a cavar a terra, para
a invenção de um rio Ao nosso autor não escapa que erguer um farol
no sertão pode ajudar a trazer o mar para o deserto E não ignora,
como Mallarmé, que o que dizemos se faz, que a palavra também
é criadora de vida da vida que temos e da vida como a desejamos.
Foi com essa convicção que Mia Couto compôs o seu retábulo sobre
uma terra que, ao nosso redor, muda incessantemente de feitio
e flora, a caminhar, sonâmbula.
Dos
idiomas de Moçambique, o que vem repartir conosco é o português
o português que nos é comum, com as surpresas das diferenças que
lhe impuseram, ao longo dos séculos, os oceanos, e estas outras,
que Mia Couto, como se delas pudesse ter saudades, vai engenhando,
tal qual sucedeu a Antônio Brandão de Amorim, ao recontar o que
os indios lhe disseram em nheengatu, e a Mário de Andrade, e a
Aquilino Ribeiro, e a Dantas Mota, e a Guimarães Rosa, primos
no modo como alcançam os nossos olhos e ouvidos ao devolver, como
eles, a linguagem à imaginação. Mia Couto imita um dos personagens
deste seu cantar de gesta, que escrevia conforme ia sonhando,
para aos seus leitores ensinar a sonhar.
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