Extraído
de Terra sonâmbula
Nova Fronteira, 1995.
A
paisagem chegara ao mar. A estrada, agora, só se tapeteia de areia
branca. À medida que a viagem prossegue, Tuahir vai piorando,
como se se aproximasse dos derradeiros finais. Ele se esbate no
banco do autocarro, tão inerte quanto Muidinga estava em sua doença.
-
Se depois desta doença eu não souber andar nem falar você me ensina
outra vez?
O
miúdo não responde. Vai arrastando o banco de Tuahir pela areia
até assentar no cimo da duna. Ali os arbustos sombreiam o leito
do companheiro.
- Vê aquele barco velho, ali abandonado?
- Vejo, tio.
- Me faça como Surendra fez com mulher dele. Meta-me nesse barco.
- Não, tio. O senhor fica comigo. Eu vou lhe cuidar.
- Me deite no barco, filho. Quero morrer sem ver nenhuma terra,
só água em todo lado.
Muidinga
se aproxima do concho. No peito da pequena embarcação pequenas
letras se desbotam. O nome do barco quase já não é legível.
- Como se chama o concho?
- Nem vai acreditar, tio.
- Por quê?
- Porque se chama Taímo. Lembra? É o mesmo nome da canoa de Kindzu.
Tuahir
permanece impávido, sem ligar à coincidência. Deve pensar que
é invenção do miúdo para o distrair. De novo, protesta para que
seja levado para a canoa. Por fim, Muidinga o arrasta e o deposita
na barriga do barquito.
- Agora, tio. Descanse a ver o mar, faz bem à disposição. Daqui
a bocadito, regressamos ao machimbombo. Está certo, tio?
- Não me leve mais para o machimbombo. De noite, está cheio dos
ratos. Vou ser comido, da maneira que nem posso me defender.
O velho tinha outro plano: ficariam esperando que a maré subisse.
Quando a canoa estivesse dentro da água, seria fácil empurrá-la
para o mar. O miúdo nem responde, seus olhos molhados se confrontam
com os argumentos da morte.
- Espere, tio. Vou-lhe ler.
- Quanto falta para acabar esses cadernos?
- Falta pouco: este é o último.
- Então não me lê. Guarda para você, quando estiver sozinho.
- Não, tio. Eu posso ler agora.
- Então, espera. Não leia já. Mais tarde, quando estiver a água
a subir.
As gaivotas rodopiam, com seus piares aflitos. O mar está sossegado,
nem parece que ali está a acontecer uma despedida.
- Muidinga, me diga uma coisa. Tudo aquilo que você leu nesses
cadernos, tudo aquilo está escrito?
- Não entendo.
- Estou perguntando se você não aumentou algumas verdades ali
naqueles cadernos.
- Mas, tio, é capaz pensar uma coisa dessas?
- Deixe. Agora me comece a ler.
As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo
quase não se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir
está deitado, olhando a água a chegar. Agora, já o barquinho balouça.
Aos poucos se vai tomando leve como mulher ao sabor de carícia
e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa então
a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas
ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças
do inteiro mundo.
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