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Ernest Hemingway

Esta entrevista foi concedida a George Plinton da revista Paris Review e foi publicada no Brasil pela Companhia das letras no volume 2 do livro Os escritores (1989), que reúne as entrevistas históricas da revista francesa com vários escritores de primeira linha. É uma preciosa aula de literatura pelo velho Hemingway e por isso reproduzimos o texto na íntegra. É um texto longo e você poderá achar melhor imprimí-lo para ler com calma e digeri-lo devidamente.Vale a pena.

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hemingwayPERGUNTA: As horas que o senhor dedica à escrita propriamente dita são agradáveis?
HEMINGWAY: Muito.

PERGUNTA: Poderia falar um pouco sobre esse processo? Em que período trabalha? O senhor segue uma programação estrita?
HEMINGWAY: Quando estou trabalhando em um livro ou um conto, escrevo diariamente de manhã, a partir da hora em que surge a primeira luz. Não tem ninguém para perturbar, é fresco, ou mesmo frio. Começo a trabalhar e vou esquentando conforme escrevo. Leio o que fiz no dia anterior e, como sempre paro num trecho a partir do qual sei o que vai acontecer, prossigo desse ponto. Escrevo até chegar a um momento em que, ainda não tendo perdido o gás, posso antecipar o que vem em seguida; paro e tento sobreviver até o dia seguinte, para voltar à carga. Se começo às seis da manhã, digamos, posso ir até meio-dia, ou interromper o trabalho um pouco antes. A interrupção dá uma sensação de vazio, como quando se faz amor com quem se gosta. E ao mesmo tempo não é um vazio, mas um transbordamento. Não há nada que o atinja, nada acontece, nada tem sentido até o dia seguinte, quando você faz tudo de novo. Difícil é viver a espera até o dia seguinte.

PERGUNTA: Consegue tirar da cabeça um projeto, seja ele qual for, quando está longe da máquina?
HEMINGWAY: Claro. Mas é preciso disciplina para se fazer isso, e essa disciplina se conquista. Tem de ser assim.

PERGUNTA: O senhor reescreve alguma coisa ao reler o que escreveu no dia anterior? Ou isso vem depois, quando já está tudo pronto?
HEMINGWAY: Eu sempre reescrevo, na manhã seguinte, o trecho do dia anterior. Naturalmente, quando acabo, repasso tudo outra vez. E tem-se mais uma chance de corrigir e reescrever quando outra pessoa datilografa, e se vê o texto passado a limpo, datilografado. A última oportunidade é nas provas. É bom ter tantas chances diferentes.

PERGUNTA: Quantas vezes reescreve um texto?
HEMINGWAY: Depende. Reescrevi o final de A farewell to arms, a última página, trinta e nove vezes, até ficar satisfeito.

PERGUNTA: Por quê? Havia algum problema técnico? O que o preocupava?
HEMINGWAY: Pôr as palavras do jeito certo.

PERGUNTA: Essa releitura que recupera a "seiva" o "gás"?
HEMINGWAY: A releitura me coloca no ponto exato onde tem que haver a continuação, dando a noção de que tudo está tão bom quanto possível. A seiva sempre está em algum lugar.

PERGUNTA: Mas existem momentos em que a inspiração não vem de jeito nenhum? HEMINGWAY: Sem dúvida. Mas ao parar num ponto em que sabia o que viria depois, posso ir em frente. Desde que consiga começar, tudo bem. O gás aparece.

PERGUNTA: Thornton Wilder fala de recursos mnemônicos que ajudam o escritor a saber a quantas anda o seu dia de trabalho. Ele diz que uma vez o senhor contou que apontou vinte lápis.
HEMINGWAY: Acho que nunca cheguei a ter vinte lápis ao mesmo tempo. Gastar sete lápis n. 2 é um bom dia de trabalho.

PERGUNTA: Pode citar alguns dos lugares que considera mais propícios para trabalhar? O hotel Ambos Mundos deve ter sido um deles, a julgar pelo número de livros que escreveu lá. Ou, na sua opinião, o ambiente tem pouca influência sobre o trabalho?
HEMINGWAY: O Ambos Mundos, em Havana, foi um lugar muito bom para se trabalhar. O Finca é um lugar fantástico, ou melhor, foi. Mas eu trabalho bem em qualquer lugar. Quer dizer, consigo trabalhar tão bem quanto me é possível nas circunstâncias mais variadas. Telefone e visitas são inimigos mortais do trabalho.

PERGUNTA: É necessário ter estabilidade emocional para se escrever bem? O senhor me disse uma vez que só conseguia escrever bem quando estava apaixonado. Poderia se estender um pouco mais nesse assunto?
HEMINGWAY: Mas que pergunta! Nota dez pela tentativa. Você consegue escrever sempre que as pessoas deixam você em paz e não interrompem. Quer dizer, consegue se for duro o bastante com relação a isso. Mas, com toda certeza, escreve-se melhor quando se está apaixonado. Se você estiver de acordo, prefiro não me estender sobre esse assunto.

PERGUNTA: E a questão da segurança financeira? Pode prejudicar a qualidade do que se escreve?
HEMINGWAY: Se ela vem relativamente cedo e você ama a vida tanto quanto o seu trabalho, é preciso ser muito forte para resistir às tentações. Uma vez que escrever tenha se tornado seu maior vício e seu maior prazer, só a morte pode acabar com isso. A segurança financeira, então, é uma grande ajuda, já que evita que você fique se preocupando. A preocupação destrói a capacidade de escrever. Uma doença incomoda, na medida em que gera uma preocupação subconsciente, minando suas reservas.

PERGUNTA: Lembra-se de algum momento específico no qual tenha tomado a decisão de ser escritor?
HEMINGWAY: Não, sempre quis ser escritor.

PERGUNTA: Philip Young, no livro que escreveu a seu respeito, sugere que o choque traumático do grave ferimento de morteiro que o senhor sofreu em 1918 influenciou profundamente sua vida como escritor. Lembro que em Madri o senhor falou rapidamente sobre essa tese, vendo pouca coisa que valesse a pena ser discutida, e dizendo que, na sua opinião, a bagagem cultural de um artista não era uma característica adquirida, mas sim hereditária, na acepção de Mendel.
HEMINGWAY: Evidentemente em Madri, naquele ano, não se poderia dizer que a minha cabeça estivesse exatamente em ordem. A única coisa que depõe a meu favor é que falei apenas rapidamente sobre o livro de Young e sua teoria do trauma na literatura. Talvez as duas concussões e a fratura craniana daquele ano me livrem da responsabilidade em relação às minhas declarações. Lembro que cheguei a ponto de dizer que acreditava que a imaginação poderia ser o resultado da experiência racial herdada. Tudo bem, para um bom bate-papo pós-concussão, mas acho que fica mais ou menos nisso. Então, até o próximo trauma liberatório, vamos ficando por aí mesmo, concorda? Muito obrigado por omitir os nomes dos parentes que eu possa eventualmente ter envolvido na história. O bom de uma conversa é poder especular, mas nem tudo - aquilo que é irresponsável, por exemplo - deveria ser escrito. Depois de escrito você tem que manter o que disse. Posso ter falado só para ver se eu acreditava ou não. Sobre a sua pergunta, os efeitos de um ferimento variam muito. Ferimentos simples, que não quebram os ossos, contam pouco. As vezes dão mais confiança. Ferimentos que causam sérios danos aos ossos e aos nervos não são nada bons para escritores, nem para ninguém.

PERGUNTA: Na sua opinião, qual o melhor treino intelectual para o aspirante a escritor?
HEMINGWAY: Digamos que ele estivesse pensando em sair e se enforcar, porque chegou à conclusão de que escrever bem é tremendamente difícil. Neste caso, deveria cortar a corda sem piedade, de forma a se ver obrigado, pelo seu próprio eu, a escrever o melhor possível pelo resto da vida. Pelo menos teria a história do enforcamento para começar.

PERGUNTA: E sobre as pessoas que seguem a carreira acadêmica? Acha que os muitos escritores que mantêm cargos acadêmicos comprometeram suas carreiras literárias?
HEMINGWAY: Depende do que você considera comprometer. Tem o mesmo sentido de "uma mulher comprometida"? E o compromisso de um estadista? Ou é o compromisso que você firma com o dono da mercearia ou com o alfaiate, no qual se estabelece que você paga um pouco mais daqui a alguns dias? O escritor que consegue escrever e lecionar deve ser capaz de fazer as duas coisas. Muitos escritores competentes provaram que isso é possível. Eu não conseguiria, sei disso, e admiro aqueles que têm capacidade para tanto. Mas acho que a vida acadêmica pode pôr um ponto final na experiência mais ampla, externa, e que provavelmente isso limitaria o conhecimento do mundo. O conhecimento, no entanto, exige responsabilidade do escritor, e faz com que escrever se tome ainda mais difícil. Tentar escrever algo que tenha valor permanente é uma ocupação que exige péríodo integral, mesmo que no processo em si sejam gastas apenas apenas algumas horas por dia. Pode-se comparar o escritor a um poço. Existem muitos tipos de poços, como de escritores. Mas o importante é que o poço tenha uma água boa, e é melhor tirar um pouco todos os dias do que esvaziá-lo de uma só vez, e ficar esperando que ele se encha novamente. Sei que estou fugindo da pergunta, mas essa pergunta não era muito interessante.

PERGUNTA: Recomendaria o trabalho jornalístico aos escritores jovens? A sua experiência no Kansas City Star foi útil?
HEMINGWAY: No Star se era forçado a aprender a escrever sentenças informativas simples. Isso é útil para qualquer um. O trabalho jornalístico não prejudica o jovem escritor e pode até vir a ajudá-lo se ele cair fora a tempo. Esse é um dos clichês mais velhos que conheço e peço desculpas por isso. Mas quando se fazem as velhas perguntas de sempre, deve-se estar preparado para receber as velhas respostas de sempre.

PERGUNTA: Escreveu uma vez no Transatlantic Review que a única razão pela qual trabalhou com jornalismo era por ser bem pago. E disse: "E quando se destroem coisas importantes, escrevendo-se sobre elas, é preciso receber um bom dinheiro por isso". Acha que escrever é uma espécie de autodestruição?
HEMINGWAY: Não me lembro de ter escrito isso algum dia. Mas me parece idiota e violento o bastante para eu ter dito, só para não ter que ficar roendo as unhas e dar uma declaração sensata. Com toda certeza eu não acho que escrever seja uma espécie de autodestruição, se bem que o jornalismo, depois de um certo ponto, pode vir a se tornar uma autodestruição diária para um escritor sério e criativo.

PERGUNTA: Na sua opinião, o estímulo intelectual da companhia de outros escritores contribui de alguma forma para o escritor?
HEMINGWAY: Sem dúvida.

PERGUNTA: Na Paris dos anos 20, o senhor tinha algum "sentimento de grupo" com relação aos outros estritores e artistas?
HEMINGWAY: Não. Não existia nenhum sentimento de grupo. Sentíamos respeito uns pelos outros. Eu respeitava muitos pintores, alguns da minha idade, outros mais velhos - Gris, Picasso, Braque, Monet, ainda vivos na época e escritores: Joyce, Ezra Pound, o que havia de bom em Stein...

PERGUNTA: Quando está escrevendo, alguma vez já se viu influenciado pelo que estava lendo na época ?
HEMINGWAY: Não, desde a época em que Joyce estava escrevendo Ulysses. Não foi uma influência direta. Mas naqueles dias, quando as palavras que conhecíamos nos eram interditas, e tínhamos que brigar por uma única palavra, a influência do trabalho de Joyce mudou tudo, e fez com que pudéssemos nos livrar das restrições.

PERGUNTA: Outros escritores lhe ensinaram alguma coisa sobre a arte de escrever? Ainda ontem o senhor estava me dizendo que Joyce, por exemplo, não suportava falar sobre o assunto.
HEMINGWAY: Junto a pessoas de seu próprio ramo, você normalmente fala dos livros de outros escritores. Quanto melhores forem os escritores menos vão falar sobre o que eles mesmos escrevem. Joyce era um grande escritor e só explicava o que estava fazendo a imbecis. Acreditava que os outros escritores que respeitava eram capazes de entender o que ele fazia no momento em que o lessem.

PERGUNTA: Parece que o senhor tem evitado a companhia de outros escri tores há anos. Por quê?
HEMINGWAY: Isso é mais complicado. Quando se escreve, quanto mais fundo se vai, mais sozinho se fica. A maioria dos antigos e melhores amigos morre. Outros se mudam.. Você não os encontra mais a não ser em raras ocasiões, mas escreve e mantém o mesmo contato de antes, como se estivessem juntos num café, como nos velhos tempos. Trocam-se cartas cômicas, às vezes descaradamente obscenas e irresponsáveis, e é quase o mesmo que conversar. Mas você fica mais sozinho, porque é assim que tem de trabalhar, e o tempo para trabalhar fica cada vez menor, e, se você desperdiça esse tempo, sente que cometeu um pecado para o qual não existe perdão.

PERGUNTA: E a influência de algumas dessas pessoas - seus contemporâneos - em sua obra? Qual a contribuição de Gertrude Stein, se é que há alguma? Ou de Ezra Pound? Max Perkins?
HEMINGWAY: Sinto muito, mas não sou muito bom em epitáfios. Existe muita gente especializada, no âmbito literário e não-literário, apta a lidar com coisas desse tipo. Gertrude Stein escreveu um tanto extensamente, e com considerável imprecisão, sobre a influência que teve em minha obra. Era necessário para ela fazer isso depois de ter aprendido a escrever diálogos com um livro chamado The sun also rises. Eu gostava muito dela e achei fantástico que tivesse aprendido a registrar conversas. Não era novidade para mim aprender com todo mundo, vivo ou morto, e eu não tinha a mínima idéia de que isso afetaria Gertrude de maneira tão violenta. Ela já escrevia muito bem de outras formas. Ezra era extremamente inteligente nos assuntos que realmente conhecia. Esse tipo de conversa não o aborrece? Essa fofoca literária de fundo de quintal, enquanto se lava a roupa suja de trinta e cinco anos atrás, está me repugnando. Seria diferente se alguém tivesse tentado contar toda a verdade. Teria algum valor. Agora é mais fácil, e melhor, agradecer a Gertrude por tudo que aprendi com ela sobre a relação abstrata das palavras, dizer o quanto eu gostava dela, reafirmar minha lealdade a Ezra, como grande poeta e amigo leal, e dizer que gostava tanto de Max Perkins que nunca fui capaz de aceitar o fato de que ele está morto. Ele nunca me pediu para mudar nada do que eu escrevia, a não ser excluir certas palavras que, na época, eram impublicáveis. Deixavam-se espaços em branco e qualquer um que conhecesse as palavras saberia quais eram. Para mim ele não foi um editor. Foi um amigo com muito para ensinar e um companheiro maravilhoso. Eu gostava do modo como usava o chapéu e do jeito estranho como seus lábios se moviam.

PERGUNTA: Quem apontaria como seus antepassados literários - aqueles com quem mais aprendeu?
HEMINGWAY: Mark Twain, Flaubert, Stendhal, Bach, Turgueniev, Tolstoi, Dostoiévski, Tchekhov, Andrew Marvell, J ohn Donne, Maupassant, 0 bom Kipling, Thoreau, Captain Marryat, Shakespeare, Mozart, Quevedo, Dante, Virgílio, Tintoretto, Hieronymus Bosch, Brueghel, Patinir, Goya, Giotto, Cézanne, Van Gogh, Gauguin, San Juan de Ia Cruz, Góngora - levaria um dia inteiro para lembrar de todos. E aí daria a impressão de eu estar querendo mostrar uma erudição que não tenho, em vez de estar tentando lembrar de todas as pessoas que tiveram influência na minha vida e na minha obra. Essa não é uma velha pergunta idiota. E uma pergunta muito boa, mas solene, e exige um exame de consciência. Mencionei pintores, ou comecei a mencionar, porque aprendo com pintores tanta coisa sobre escrever como com escritores. Quer saber como é possível ? Levaria mais um dia para explicar. Imagino que o que se aprende com compositores e o estudo de harmonia e contraponto seja óbvio.

PERGUNTA: Já tocou algum instrumento musical?
HEMINGWAY: Costumava tocar violoncelo. Minha mãe me tirou da escola um ano inteiro, para que eu estudasse música e contraponto. Achava que eu tinha jeito, mas eu não tinha o menor talento. Tocávamos música de câmara ­ alguém tocava violino; minha irmã tocava viola e minha mãe, piano. Eu tocava violoncelo pior que qualquer outra pessoa na face da Terra. E claro, naquele ano fiquei livre para fazer outras coisas também.

PERGUNTA: Relê os escritores de sua lista? Twain, por exemplo?
HEMINGWAY: É preciso dar um prazo de uns dois ou três anos com Twain. Você grava muito as histórias. leio um pouco de Shakespeare todo o ano.Sempre Lear. É só ler i fico mais estimulado.

PERGUNTA: A leitura é, então, uma ocupação e um prazer constantes?
HEMINGWAY: Vivo lendo livros - todos que aparecem. Faço um certo racionamento, de forma a ter sempre algum de reserva.

PERGUNTA: Lê manuscritos?
HEMINGWAY: Você só se dá ao trabalho de fazer isso se conhece o autor pessoalmente. Há alguns anos fui processado por plágio por um homem que afirmava que eu havia roubado a idéia de For whom the bell tolls de um roteiro de filme não publicado que ele escrevera. Ele teria lido o tal roteiro numa festa em Hollywood. Disse que eu estava lá, pelo menos havia um cara chamado "Ernie", ouvindo a leitura, e isso foi o bastante para ele mover uma ação contra mim, exigindo um milhão de dólares. E, ao mesmo tempo, ele processou os produtores dos filmes Northwest mounted police e Cisco Kid, afirmando que os dois também tinham sido tirados daquele mesmo roteiro inédito. Fomos a julgamento e, lógico, ganhamos a causa. Mas o sujeito estava falido.

PERGUNTA: Bom, voltando um pouco àquela lista - se pegarmos um daqueles pintores - Hieronymus Bosch, por exemplo. A natureza simbólica do pesadelo na obra dele parece estar afastada de qualquer relação com a sua obra.
HEMINGWAY: Tenho pesadelos e conheço os de outras pessoas. Mas não há necessidade de se pôr isso no papel. Tudo que se sabe e pode ser omitido ainda está presente no que se escreve, e sua natureza se fará presente. Quando um escritor omite coisas que não sabe, elas aparecem no texto feito buracos.

PERGUNTA: Quer dizer então que um conhecimento profundo das obras das pessoas em sua lista ajuda a preencher o "poço" de que falou há pouco? Ou foram uma ajuda consciente no desenvolvimento das técnicas de redação?
HEMINGWAY: Fizeram parte do aprender a ver, a ouvir, a pensar, a sentir e a não sentir, e a escrever. O poço está onde está seu gás. Ninguém sabe do que ele é feito, muito menos você. Você já sabe se está com ele ou não, se vai ter que esperar até que ele venha novamente.

PERGUNTA: O senhor admitiria a existência de símbolos em seus romances?
HEMINGWAY: Acredito que existam símbolos, já que os críticos continuam a encontrá-los. Se não se importa, não gosto de falar sobre símbolos, e nem que me façam perguntas sobre isso. Já é bastante difícil escrever livros e contos, e ainda por cima lhe pedem para ficar explicando o sentido. Isso também acaba tirando o emprego dos explicadores. Se cinco ou seis, ou mais explicadores profissionais podem dar conta da coisa, por que eu iria me meter? Leia tudo que escrevo só pelo prazer da leitura. Qualquer outra coisa que venha a encontrar será a medida daquilo que você trouxe à leitura.

PERGUNTA: Só mais uma pergunta nessa mesma linha: um dos consultores de nossa revista ficou admirado com um paralelo que julga ter encontrado em The sun also rises, entre os dramatis personae de uma praça de touros e os personagens do próprio romance. Ele chama a atenção para o fato de que a primeira sentença do livro nos diz que Robert Cohn é um lutador de boxe; depois, durante a desencajonada, o touro é descrito como se usasse os chifres do mesmo modo como um boxeador usa os braços, investindo com ganchos e jabs. E assim como o touro é atraído e pacificado pela presença de um boi, Robert Cohn acata Jake, que é castrado exatamente como um boi. Ele vê Mike como o picador, provocando Cohn constantemente. A. tese desse consultor é um pouco mais longa, mas o que ele gostaria de saber é se houve uma intenção consciente de sua parte em construir o romance nos moldes da estrutura trágica que envolve o ritual da tourada.
HEMINGWAY: Dá uma ligeira impressão de que esse consultor era um tanto quanto doido. Quem disse que Jake era "castrado exatamente como um boi"? Na verdade, ele foi ferido de uma maneira bem diferente e seus testículos ficaram intactos, não foram atingidos. Portanto, ele era capaz de experimentar todas as sensações como homem, só que incapaz de levar isso a termo. O importante aqui é ver que o ferimento de Jake era físico e não psicológico, e que ele não era castrado.

PERGUNTA: Essas perguntas que abordam a criação artística são realmente uma chateação.
HEMINGWAY: Uma pergunta inteligente não deve ser nem um prazer nem uma chateação. Mas ainda acho que é muito desagradável para o escritor falar sobre como ele escreve. Escreve para ser lido com os olhos e nenhuma explicação ou dissertação deveria ser necessária. Pode ter certeza que existe muito mais no que se escreve do que aquilo que se lê numa primeira leitura e, por ser assim, não é função do escritor explicar o que escreve ou organizar excursões, como um guia turístico, através da região mais difícil de sua obra.

PERGUNTA: Com relação a isso, eu me lembro que o senhor também disse ser perigoso para o escritor falar sobre uma obra em andamento, que ele pode "ficar sem assunto", por assim dizer. Por que seria desse jeito? Só estou perguntando porque há tantos escritores -Twain, Wilde, Thurber, Steffens são alguns de que me recordo agora - que parecem ter dado o acabamento ao que escreviam testando esse material em ouvintes.
HEMINGWAY: Não posso acreditar que Twain alguma vez tenha "testado" Hucleberry Finn em ouvintes. Se fez isso, eles provavelmente foram os responsáveis por fazer com que cortasse coisas boas e colocasse as partes ruins. Pessoas que conheciam Wilde diziam que ele era melhor conversando do que como escritor. Steffens conversava melhor do que escrevia. As vezes era difícil de se acreditar tanto no que ele escrevia como no que falava, e ouvi muitas histórias mudarem conforme ele ia ficando mais velho. Se Thurber conversa tão bem quanto escreve, deve ser uma das pessoas mais incríveis e menos chatas para se conversar. Dos homens que conheço, o que melhor fala sobre aquilo que faz, que tem a prosa mais agradável e a língua mais afiada é Juan Belmonte, el matador.

PERGUNTA: Poderia dizer quanto de esforço consciente de elaboração entrou no desenvolvimento do seu estilo pessoal?
HEMINGWAY: Essa é uma pergunta cansativa e exige muito tempo para ser respondida. Se você passasse dois dias respondendo, ficaria tão consciente de si mesmo que não conseguiria mais escrever. Eu diria que aquilo que os amadores chamam de estilo geralmente é apenas a inevitável falta de jeito da piimeira tentativa de se fazer algo que até então nunca havia sido feitô: Quase nenhum dos novos clássicos se parece com os antigos. No início, as pessoas só consegem ver a falta de jeito. Depois isso não é mais tão perceptível. Quando se revela uma falta de jeito ímpar, as pessoas pensam que isso é estilo e muitas passam a copiar. O que é Jamentável.

PERGUNTA: O senhor uma vez me escreveu dizendo que as circunstâncias sob as quais muitas obras de ficção foram escritas poderiam, por si só, fornecer muitas informações. Isso se aplicaria a "The killers" - o senhor disse que escreveu esse conto, "Ten indians" e "Today is Friday" em um dia - e, talvez, ao seu primeiro romance, The sun also rises?
HEMINGWAY: Vejamos. The sun also rises, comecei em Valência, no dia do meu aniversário, 21 de julho. Minha mulher, Hadley, e eu tínhamos ido a Valência logo cedo para conseguir entradas para a Feria, que começava dia 21 de julho. Todo mundo com a minha idade já tinha escrito um romance, e eu ainda tinha dificuldade para escrever um parágrafo. Então comecei o livro no dia do meu aniversário, escrevi durante toda a Feria, na cama, de manhã; fui para Madri e continuei a escrever. Lá não havia Feria, tínhamos um quarto com uma mesa e eu escrevia com todo o conforto sobre a mesa e na esquina perto do hotel, numa cervejaria na Pasaje Alvarez onde era bem fresco. Por fim, ficou quente demais para se escrever e fomos para Henday. Havia um hotelzinho barato na praia - linda, imensa - e trabalhei muito bem por lá; depois fomos para Paris e terminei o primeiro esboço do livro no apartamento em cima da serraria, no 113 rue Notre-Dame-des-Champs, seis semanas depois do dia em que comecei a escrever. Mostrei esse primeiro rascunho a Nathan Asch, o romancista, que na época tinha um sotaque bem carregado, e ele disse: "Hem, o que você querr dizerr com escrrevi um rromance? Um rromance, huh. Você está escrrevendo é um cademo de viagem". Não fiquei muito desanimado com o comentário de Nathan e reescrevi o livro, mantendo a viagem (que era a parte sobre a pescaria e Pamplona), em Schruns, no Vorarlberg do hotel Taube. Os contos que você mencionou, eu os escrevi em um dia, em Madri, no dia 16 de maio, enquanto nevava, durante as touradas de San Isidro. Escrevi primeiro "The Killers", que já tinha tentado escrever antes, sem sucesso. Então, depois do almoço, fiquei na cama para me manter aquecido e escrevi "Today is Friday". Estava com tanto gás que cheguei a pensar que ia ficar louco, poderia escrever mais uns seis contos. Então me vesti e fui andando até Fomos, o tradicional café dos toureiros, tomei um café, voltei e escrevi "Ten indians". Esse conto me deixou muito deprimido; bebi um pouco de conhaque e fui dormir. Eu tinha me esquecido de comer e um dos garçons trouxe um pouco de bacalao, um pequeno bife com batatas fritas e uma garrafa de Valdepefias. A mulher que tomava conta da pensão vivia preocupada porque eu não comia direito e, dessa vez, tinha mandado o garçom. Lembro que fiquei sentado na cama, comendo e bebendo o Valdepefias. 0 garçom disse que ia trazer outra garrafa. Disse que a senhora gostaria de saber se eu ia passar a noite toda escrevendo. Respondi que não, que estava pensando em dar uma paradinha e descansar. "Por que o senhor não tenta escrever só mais um?" -perguntou. "Só preciso escrever um." "Bobagem - disse ele. - o senhor poderia escrever uns seis." "Tento isso amanhã", respondi. E então ele me disse: "Tente agora. Por que o senhor acha que a dona lá embaixo mandou a comida para cá?". "Estou cansado", eu disse. E ele: "Bobagem" (a palavra não foi bem essa). "O senhor cansado depois de três continhos de nada. Traduz um para mim." "Deixe-me só", falei. "Como é que eu vou escrever se você não me deixar em paz?" Então sentei na cama bebendo o Valdepefias e pensei no grande escritor que eu seria, se o primeiro conto tivesse saído tão bom quanto eu esperava.

PERGUNTA: Como se apresenta em sua mente a concepção de um conto? O tema, o enredo, algum personagem muda conforme vai escrevendo?
HEMINGWAY: As vezes sei a história. As vezes vou compondo conforme escrevo e nem tenho idéia de como vai ficar. Tudo muda conforme o desenroIar. É isso que faz o movimento, que faz a história. As vezes o movimento é tão lento que parece que não há movimento algum. Mas sempre há mudança e sempre há movimento.

PERGUNTA: É assim também com o romance, ou o senhor elabora todo um plano antes de começar e segue rigorosamente esse plano?
HEMINGWAY: For whom the bell tolls foi um problema que tive de enfrentar diariamente. Em princípio sabia o que ia acontecer. Mas inventava o que acontecia a cada dia.

PERGUNTA: The green hills of Africa, To have and have not e Across the river and into the trees começaram todos como contos e acabaram se transformando em romances? Se foi esse o caso, essas duas formas são tão semelhantes que o escritor pode passar de uma para a outra sem ter que rever por completo o tratamento dado?
HEMINGWAY: Não, isso não é verdade. The green hills of Africa não é um romance, foi uma tentativa de escrever um livro absolutamente fiel à verdade, para ver se o contorno de uma região e o esquema de um mês de ação poderiam, se apresentados de maneira verídica, se equiparar a uma obra fictícia. . Depois de tê-lo escrito, escrevi dois contos, "The snows of Killimanjaro" e "The short happy life of Francis Macomber". Esses contos, inventei com base no conhecimento e na experiência que havia adquirido naquele mesmo mês de longas caçadas do qual tentei dar um relato fiel em The green hills. To have and have not e Across the river and into the trees começaram, os dois, como contos.

PERGUNTA: Acha fácil passar de um projeto literário para outro, ou o senhor segue direto num só projeto, para acabar o que começou?
HEMINGWAY: O fato de estar interrompendo um trabalho sério para responder a essas perguntas prova que sou tão idiota que merecia receber um castigo terrível. E vou receber. Não se preocupe.

PERGUNTA: Vê-se competindo com outros escritores?
HEMINGWAY: Nunca. Costumava tentar escrever melhor do que certos escritores já falecidos, aqueles que julgava terem realmente valor. Já há um bom tempo venho apenas tentando fazer o melhor que consigo. As vezes tenho sorte e escrevo melhor do que posso.

PERGUNTA: Acha que a força de um escritor diminui conforme ele envelhece? Em The green hills of Africa o senhor diz que os escritores norte-americanos com uma certa idade se transformam em "vovozinhas".
HEMINGWAY: Não sei de nada disso. Pessoas que sabem o que fazem deveriam permanecer em atividade desde que suas cabeças continuassem em atividade. Nesse livro a que se referiu, se você olhar direito, vai ver que eu estava falando horrores sobre a literatura norte-americana com um austríaco completamente sem humor, que estava me forçando a conversar, quando o que eu queria era fazer outra coisa. Fiz um relato exato dessa conversa. Não para fazer pronunciamentos imorredouros. Uma boa porcentagem das opiniões é bem razoável.

PERGUNTA: Até agora não discutimos personagens. Os personagens de suas obras são, sem exceção, tirados da vida real?
HEMINGWAY: Claro que não. Alguns vêm da vida real. A maioria você inventa a partir do conhecimento, da compreensão e da experiência com pessoas.

PERGUNTA: Poderia dizer alguma coisa sobre o processo de transformar um personagem real num personagem fictício?
HEMINGWAY: Se fosse explicar como isso às vezes é feito, ia parecer um manual para advogados de acusação.

PERGUNTA: Faz alguma distinção - como faz E. M. Forster - entre personagens "planos" e "redondos"?
HEMINGWAY: Se você descreve alguém, é plano, é como uma fotografia, e, no meu ponto de vista, uma falha. Se você cria esse alguém a partir daquilo que você conhece, ele terá todas as dimensões.

PERGUNTA: Dos seus personagens, quais são os que vê com um carinho especial?
HEMINGWAY: Isso daria uma lista enorme.

PERGUNTA: Então gosta de reler seus próprios livros -sem sentir que existem coisas que gostaria de mudar?
HEMINGWAY: Leio, às vezes, para me sentir incentivado quando está difícil escrever; então me lembro que sempre foi difícil e de como às vezes era quase impossível.

PERGUNTA: Como dá nome aos personagens?
HEMINGWAY: O melhor que posso.

PERGUNTA: Os títulos lhe ocorrem enquanto está no processo de criação da história ?
HEMINGWAY: Não. Faço uma relação de títulos depois que termino o conto ou o livro - às vezes chega a uns cem. Então começo a eliminar alguns, às vezes todos.

PERGUNTA: Faz isso até mesmo com uma história cujo título foi sugerido pelo próprio texto -"Hills like white elephants", por exemplo?
HEMINGWAY: É. O título vem depois. Conheci uma garota em Prunier, onde eu tinha ido para comer ostras antes do almoço. Fiquei sabendo que ela havia abortado. Me aproximei e conversamos, não falamos sobre o aborto, mas no caminho de volta para casa fui pensando na história, não almocei, e passei a tarde escrevendo o conto.

PERGUNTA: Então quando não está escrevendo, continua a ser invariavelmente o observador, procurando alguma coisa que possa ser útil.
HEMINGWAY: Sem dúvida. Se o escritor deixa de observar, está acabado. Mas ele não tem que observar conscientemente, nem pensar como isso pode ser útil. Talvez seja assim no início. Mas depois, tudo que ele vê passa a fazer parte da grande reserva de coisas que ele conhece ou já viu. Se é que isso pode ter algum interesse, sempre escrevo seguindo o princípio do iceberg. Só se vê um oitavo, os outros sete estão debaixo d'água. Tudo o que você sabe e pode eliminar só fortalece o iceberg. E aparte que não aparece. Agora, se o escritor omite alguma coisa porque não sabe o que é, então fica um buraco na história. The old man and the sea poderia ter mais de mil páginas, e mostrar cada um dos habitantes da vila, todos os processos de como eles ganhavam a vida, nasciam, se criavam, tinham filhos etc. Mas isso já foi feito com perfeição por outros escritores. Quando você escreve, fica limitado por aquilo que já foi bem feito. Então, venho tentando aprender a fazer uma coisa diferente. Primeiro, tento eliminar tudo que é desnecessário, para transmitir a experiência ao leitor de forma que, depois de ler o texto, este se torne parte de sua experiência e pareça ter acontecido de verdade. É muito difícil de se conseguir, venho trabalhando duro nisso. De qualquer forma, para fugir do "como isso é feito", tive uma sorte inacreditável dessa vez, e consegui transmitir a experiência por completo e fazer com que fosse uma experiência que ninguém ainda havia transmitido. A sorte foi eu ter um bom homem e um bom menino. De um tempo para cá, os escritores têm se esquecido que essas coisas existem. E sempre vale a pena escrever sobre o mar, assim como sobre o homem. Tive sorte nisso. Eu já tinha visto o acasalamento de espadartes e sabia tudo a respeito. Deixei de fora. Tinha visto um cardume (ou bando) de mais de cinquenta cachalotes e uma vez acertei o arpão em um com quase dois metros de comprimento e o perdi. Deixei de fora. Deixei de fora todas as histórias que conheço da vila dos pescadores. Mas todo esse conhecimento dá corpo à parte submersa do iceberg.

PERGUNTA: ArchibÍlld MacLeish falou de um método de transmitir experiência que, segundo ele, o senhor desenvolveu quando cobria jogos de beisebol nos dias do Kansas City Star. O método consistia simplesmente na transmissão da experiência através de pequenos detalhes que, relatados tintim por tintim, acabavam dando a idéia do todo, fazendo com que o leitor ficasse consciente daquilo que ele já sabia, mas em seu subconsciente...
HEMINGWAY: Essa historinha é apócrifa. Nunca cobri beisebol para O Star. O que Archie tentava se lembrar era de como eu estava tentando aprender, em Chicago, por volta de 1920, e de como eu procurava pelas coisas despercebidas, que revelavam a emoção, coisas como o jeito pelo qual o jogador de beisebol jogava a luva para trás sem olhar onde ela havia caído, o chiado da sola do lutador sobre a lona encerada, a tonalidade cinzenta da pele de Jack Blackburn assim que ele saía de uma luta, e outras coisas que eu anotava, como um pintor faz esboços. Você via a cor estranha de Blackbum, as cicatrizes de navalha e o jeito como ele acertava um homem, antes de saber a sua história. Eram essas as coisas que lhe davam emoção antes que você soubesse da história.

PERGUNTA: Já descreveu algum tipo de situação do qual não tivesse nenhum conhecimento pessoal?
HEMINGWAY: Essa é uma pergunta muito estranha. Por conhecimento pessoal você quer dizer experiência? Nesse caso, a resposta é sim. Um escritor, se tem algum valor, não descreve. Ele inventa ou cria a partir do conhecimento pessoal e impessoal, e às vezes parece ter um conhecimento inexplicado que poderia vir da experiência familiar e racial já esquecida. Quem ensina o pombo­correio a voar como ele voa; de onde o touro tira a sua bravura, ou o cão de caça o seu faro? Isso é uma elaboração, ou uma condensação, daquilo que conversamos em Madri, quando a minha cabeça não estava muito confiável.

PERGUNTA: Qual o distanciamento que precisa ter de uma experiência antes de poder escrever sobre ela em termos de ficção? O acidente aéreo em que esteve envolvido na Africa, por exemplo.
HEMINGWAY: Depende da experiência. Uma parte sua vê com total distanciamento desde o início. E uma outra fica muito envolvida. Acho que não existe uma regra que determine depois de quanto tempo deve-se escrever sobre uma experiência que ocorreu. Depende da capacidade de adaptação do indivíduo, e de sua capacidade de recuperação. Sem dúvida, é muito bom para um escritor experiente sofrer um acidente num avião em chamas. Ele aprende várias coisas importantes, bem rápido. Se vão ser de alguma utilidade para ele, vai depender da sua sobrevivência. A sobrevivência, com honra, essa palavra fora de moda e de importância vital, é mais difícil e mais importante do que nunca para o escritor. Aqueles que não perduram são sempre mais amados, já que ninguém tem que vê-Ios em suas lutas infindas, monótonas, implacáveis, sem trégua, que eles inventam para fazer algo do jeito como acreditam que deve ser feito, antes de morrerem. Os que morrem ou desistem cedo, fácil, com toda razão são preferidos, porque compreensíveis e humanos. O fracasso e a covardia bem disfarçada são mais humanos e mais amados.

PERGUNTA: Poderia dizer até que ponto, na sua opinião, o escritor deve se preocupar com os problemas sócio-políticos de sua época ?
HEMINGWAY: Cada um tem sua própria consciência, e não deveriam existir regras sobre como a consciência deve funcionar. Tudo que você pode ter cer teza a respeito de um escritor com preocupações políticas é que, se a obra dele permanecer viva, você vai ter que ignorar a política quando o ler. Muitos dos chamados escritores engajados mudam de ideologia a toda hora. Isso é muito estimulante para eles e para suas resenhas político-literárias. As vezes têm até que reescrever seus pontos de vista e na maior pressa. Talvez dê para se respeitar esse tipo de atitude como uma forma de se buscar a felicidade.

PERGUNTA: A influência política de Ezra Pound sobre o segregacionista Kasper afetou de algum modo a sua crença de que o poeta deveria ser libertado do St. Elizabeth Hospital?.
HEMINGWAY: Não. De forma alguma. Acredito que Ezra deveria ser posto em liberdade e que deveriam permitir que ele, sob o compromisso solene de se abster de toda e qualque atividade associada à política, continuasse a escrever poesia na Itália(*). Eu ficaria feliz em ver Kasper na cadeia o mais rápido possível. Grandes poetas não são necessariamente orientadores de moças, chefes de escoteiros ou exemplos para a juventude. Só para mencionar alguns: Verlaine, Rimbaud, Shelley, Byron, Baudelaire, Proust, Gide não deveriam ter sido presos só para se impedir que fossem imitados em seu modo de pensar, maneiras e morais, pelos Kaspers locais. Tenho certeza que daqui a dez anos vai ser preciso pôr uma nota de rodapé para explicar quem foi Kasper.

PERGUNTA: Existiria alguma intenção didática em sua obra?
HEMINGWAY: Didática é palavra que tem sido usada erroneamente e se estragou. Death in the afternoon é um livro instrutivo. :

PERGUNTA: Tem-se falado que os escritores trabalham apenas com uma ou duas idéias no decorrer de suas obras. Diria que a sua obra reflete uma ou duas idéias?
HEMINGWAY: Quem disse isso? Parece simples demais. O homem que disse isso provavelmente tinha só uma ou duas idéias.

PERGUNTA: Bem, talvez fosse melhor colocar as coisas da seguinte maneira: Graham Greene disse que existe uma paixão predominante, que confere a um conjunto de obras a unidade de um sistema. Se não me engano, o senhor mesmo disse que grandes textos nascem de um senso de injustiça. Considera isso um fator importante, que o romancista seja dominado dessa maneira -por tal senso de injustiça?
HEMINGWAY: Graham Greene tem uma facilidade para fazer declarações que eu não tenho de modo algum. Para mim seria impossível tecer generaliza.; ções sobre um conjunto de obras, um bando de perdizes ou um pelotão de gansos. Mesmo assim, vou arriscar uma generalização. Um escritor sem senso de justiça e injustiça ganharia mais editando o anuário de uma escola para crianças excepcionais do que escrevendo romances. Outra generalização. Viu só? Até que elas não são tão difíceis, quando são óbvias o suficiente. O dom mais importante para um bom escritor é um detector interno de baboseiras à prova de choque. Esse é o radar do escritor e todos os grandes escritores ti veram um.

PERGUNTA: Para encerrar, uma pergunta essencial: como escritor criativo que é, qual considera ser a função da sua arte? Por que a representação do fato, em vez do fato em si?
HEMINGWAY: Por que ficar quebrando a cabeça com isso? De coisas que aconteceram, de coisas que estão acontecendo, e de todas as coisas que você conhece e de todas aquelas que não pode conhecer, você cria algo com a jmagi­nação, algo que não é uma representação, mas sim uma coisa inteiramente nova, mais real do que qualquer coisa viva e real, e você dá vida a essa coisa, e se fizer isso bem o bastante, você lhe confere imortalidade? por isso que se escreve, não por qualquer outra razão que possa vir a conhecer. Ma!' e todas aque­las razões que ninguém conhece?

(*) Em 1958, uma vara federal em Washington, D. C., retirou todas as acusações contra Ezra Pound, abrindo caminho para a sua libertação do St. Elizabeth

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