Extraído
de Pergunte ao Pó
Editora Brasiliense, 1987
Eu
era um jovem, passando fome e bebendo e tentando ser um escritor,
Fiz a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Publica de
Los Angeles, e nada do que eu li tinha a ver comigo ou com as
ruas ou com as pessoas em minha volta. Parecia que todo mundo
estava brincando de jogar com as palavras, que aqueles que não
diziam quase nada eram considerados escritores excelentes. Seus
escritos eram uma mistura de sutileza, artesanato e forma, e era
lido e era ensinado e era ingerido e acabou. Era um esquema confortável,
uma Cultura da Palavra, muito malandra e cheia de nove-horas.
Era
preciso voltar aos escritores da Rússia pré-revolucionária para
achar alguma ginga, alguma paixão.Havia exceções mas essas exceções
eram tão poucas que a gente as lia logo, e lá estava você olhando
para filas e filas de livros chatos pra caralho.
Com
séculos para olhar para trás, com todas as suas vantagens, os
modernos não davam pra saída.
Tirei
livro apos livro das estantes. Por que é que alguém não diz alguma
coisa? Por que é que ninguém sai gritando?
Tentei
outros livros na biblioteca. A seção sobre religião era um pe
no saco, pra mim. Fui pra filosofia. Encontrei alguns alemães
amargurados que me animaram um tempo, mas não passou disso. Tentei
matemática mas matemática superior era igualzinho religião: não
saquei bulhufas. O que EU precisava parecia não existir em lugar
algum.
Tentei
geologia e a achei curiosa mas, finalmente, insubstancial.
Achei
alguns livros sobre cirurgia e gostei dos livros sobre cirurgia:
as palavras eram novas e as ilustrações, maravilhosas. Gostei
particularmente e memorizei a operação no mesocólon.
Daí
eu abandonei a cirurgia e voltei para a sala dos romancistas e
contistas (Quando eu tinha bastante vinho barato pra beber eu
nunca ia a biblioteca. Uma biblioteca era um bom lugar para ir
quando você não tinha nada pra beber nem pra comer, e a dona da
pensão estava atrás de você e do dinheiro do aluguel. Na biblioteca,
pelo menos, você tinha uma privada que preste). Vi uma porção
de vagabundos lá, a maior parte dormindo em cima dos livros.
Eu
ficava andando pelo salão, tirando os livros das estantes, lendo
umas linhas, algumas páginas, depois pondo de volta.
Então
um dia peguei um livro, abri e lá estava. Parei por um momento,
lendo. Então como alguém que achou ouro no lixo, levei o livro
para uma mesa. As linhas rolavam fácil pela pagina, havia uma
corrente. Cada linha tinha sua própria energia e era seguida por
uma outra que nem ela, A própria substancia de cada linha dava
uma forma à pagina, a sensação de alguma coisa esculpida ali.
E, aqui, afinal, estava um homem que não tinha medo da emoção.
O humor e a dor estavam misturados numa esplendida simplicidade.
Começar aquele livro foi um selvagem e enorme milagre pra mim.
Eu
tinha um cartão da biblioteca. Tirei o livro, levei-o para meu
quarto, me joguei na cama e li, e eu sabia muito antes de terminar
que aqui estava um homem que tinha desenvolvido um jeito diferente
de escrever. O livro era Pergunte ao Pó e o autor, John Fante.
Ele
ia ser uma influencia permanente sobre o meu modo de escrever.
Terminei
Pergunte ao Pó e procurei outros livros de Fante na biblioteca.
Achei
dois: Dago Red e Espere Até a Primavera, Bandini. Eram da mesma
categoria, escritos com as tripas e com o coração.
Sim,
Fante teve um puta efeito sobre mim. Logo depois de ter lido seus
livros, comecei a viver com uma mulher. Ela bebia mais que eu
e tivemos umas brigas brabas e então eu gritava para ela:
- Não me chame de filho da puta! Eu sou Bandini, Arturo Bandini!
Fante
era meu deus e eu sabia que os deuses devem ser deixados em paz,
não se bate na porta deles. Mesmo assim eu gostaria de saber onde
ele tinha vivido em Angel’s Flight e imaginei que ele ainda podia
estar vivendo lá. Quase todo dia eu passeava por lá e pensava:
foi por essa janela que Camila passou? Essa é a porta do hotel?
E essa a portaria? Nunca cheguei a saber.
39
anos depois, reli Pergunte ao Pó. Isto é, reli este ano e lá estava
ele inteiro, como as outras obras de Fante, mas esta é a minha
predileta porque foi minha primeira descoberta da mágica.
Há
outros livros além de Dago Red e Espere até a Primavera, Bandini.
São Cheio de Vida e A Irmandade da Uva. E, atualmente, Fanle tem
um romance em obras, uma obra romance em processo, uma obra em
obras, Um Sonho de Bunker Hill.
Através
de outras circunstâncias, finalmente encontrei o autor este ano.
Tem muito mais coisa na história de John Fante. É a historia de
uma sorte terrível, e um terrível destino, e de uma coragem rara
e natural.
Algum
dia vai ser contada mas eu sinto que ele não quer que eu a conte
aqui.
Mas quero dizer que o jeito de suas palavras e o jeito do seu
jeito são ainda os mesmos: fortes e bons e quentes.
Chega.
Agora esse livro é de você.
Charles
Bukowski 05-06-79

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