Extraído
de Sonhos de Bunker Hill
Editora Brasiliense, 1987
Se
me perguntassem qual foi o livro que mais gostei de ler em 1984 (e
nos últimos anos), responderia sem vacilar: Pergunte ao
Pó, de John Fante. Ele trouxe de volta um tipo de emoção
experimentado no final dos anos 60, com a descoberta de J. D. Salinger,
do Holden Caulfield de O Apanhador no Campo de Centeio aos
membros da família Glass, à qual pertencia Seymour,
o suicida poeta zen. Em comum entre os dois, uma infinita piedade
pela condição humana e a inocência de personagens
perdidas num mundo de relações incompreensíveis.
Sonhos
de Bunker Hill traz de volta o alter-ego de Fante: o escritor
Arturo Bandini, visto alguns anos depois de Pergunte ao Pó.
O virginal Bandini do livro anterior agora batalha no mundo dos roteiros
cinematográficos de Los Angeles cidade que ele amou e cantou
como ninguém -, fascinado por traseiros femininos, em luta
contra a falta de grana e, quase sempre, de inspiração
para escrever.
Publicado originalmente em 1982, um ano antes da morte de Fante, aos
74 anos, o livro tem uma peculiaridade: não foi escrito, mas
ditado a Joyce; mulher do autor. Cego, com as duas pernas amputadas
devido a problemas com diabetes, essa foi a única maneira que
Fante encontrou de não parar de escrever. Não podia
parar. E, escrevendo ou ditando, a emoção era sempre
a mesma: tripas e coração, como diz seu admirador Bukowski,
misturados no mesmo esfoço de fundir humor e dor, ternura e
ridículo, grandeza e miséria. Bandini é palhaço,
herói, gigoló, artista, vagabundo, romântico:
tudo ao mesmo tempo.Daí talvez sua irresistível simpatia,
capaz de fazer com que qualquer um de nós se identifique com
suas confusões.
Em volta de Bandini, uma galeria de personagens muitas nitidamente
calcadas em modelos reais daquela fauna absurda dos anos de ouro de
Hollywood, nas décadas de 30 e 40 - tão malucas quanto
ele. Podem ser a roteirista Velda van der Zee, autora (em co-autoria
com Bandini) do hilariante faroeste Sun City, ou o também roteirista
Frank Edgington, vagamente homossexual, com quem Bandini divide uma
história ambígua, regada a vinho e maconha (ele agora
está menos moralista do que quando conheceu Camila Lopez, a
inesquecível princesa maia de sapatos em farrapos, de Pergunte
ao Pó), o lutador Duque de Sardenha, ou a amante Helen
Brownell, dona do hotel onde ele mora. Em todos, a palavra de Fante
não demarca nenhum limite definido entre a dignidade e o grotest;o.
Nessa delicada faixa de transição do cómico para
o trágico, nessa corda-bamba entre o que se gostaria de ser
e o que realmente se é, equilibram-se as pungentes criaturas
de Fante. Que fazem rir um riso nervoso, de olhos molhados.
Os sonhos sonhados em Bunker Hill, guardadas circunstâncias
e proporções, são os mesmos sonhos de todos nós.
É o sonho de um trabalho criativo e gratificante, que a realidade
acaba por reduzir a duas palavras no roteiro de Sun City: Whoa!
e À toda! Os sonhos de um grande amor pulverizados pelo
cansaço sem sex-appeal de uma cinquentona, e a modesta contestação,
"Éramos bons um para o outro, Helen Browne e eu".
O sonho de uma volta triunfante ao lugar de origem - quando Bandini
retorna a Boulder, no Colorado, e um porre antiestratégico
transforma em tombo as vantagens contadas sobre Johnny Weismuer e
Esther Williams e Buster Crabbe. Em todos os tombos de Bandini, o
desmentido da fantasia de que a vida, afinal, seja menos mesquinha.
Viver, a própria vida vai provando aos pouquinhos, não
tem nenhum happy-end em technícolor e cinemascope.
Para Fante-Bandini, a única forma de conquistar essa ilusão
de sentido, grandeza ou beleza da vida talvez tenha sido escrever.
Por isso, no final, com "dezessete dólares na carteira
e o medo de escrever", ele senta-se em frente à máquina,
e, orando a Deus e a Knut Hamsum,
inicia o processo mágico e salvador de transformar em ficção
cheia de poesia uma realidade que nem sempre foi tão poética
assim. "Ah vida!" - ele clamava em Pergunte ao Pó.
-"Tua amarga doce tragédia, sua puta deslumbrante que
me levaste à destruição ".
John Fante não foi exatamente "um gigante da literatura
", nem escreveu sobre grandes tragédias da alma humana:
detinha-se sobre o pequeno, com muito cuidado. Com doses generosas
de sentimentos raros: perdão e amor. Ele escreveu pouco: além
de Pergunte ao Pó e Bunker Hill, sua obra compõem-se
apenas de Wait Until Spring, Bandini (1938), os contos de Dago
Red (1940), Full of Life (1952) e The Brotherhood
of Grape (1977).
Passou quase toda a vida retirada dos cintilantes circuitos da badalação,
às voltas com problemas de saúde. Era um homem muito
simples, todos dizem. Sabia que suas histórias não tinham
muitas pretensões mais do que, resgatar do pó do esquecimento
figuras que, se ele não as tivesse lembrado, permaneceriam
para sempre anônimas. Sabia também que tudo parece meio
idiota quando se pensa na morte. E que as pessoas, de muitas maneiras
estranhas, tortuosas, piradas, no final das contas só querem
amar e ser felizes. Doloroso é que isso, que parece tão
pouco, seja geralmente tão inatingível. Fante-Bandini
sabia muito bem de todas essas coisas.

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