Trecho
extraído de A Oeste de Roma
Editora Brasiliense, 1990
Harriet
sentou-se ao meu lado. Quando nos aproximávamos todos riam
e conversavam, mas agora o silêncio era total e eles nos davam
um gelo. Notei que Rick e Denny puxavam fumo. Harriet também
reparou.
- Tomem cuidado -preveniu. - O xerife manda patrulhar a praia o tempo
todo.
Eles sorriram como velhos sábios.
- Quer dar um tapa, papai? - ofereceu Denny.
- Não, obrigado.
- E você, mamãe?
Ele devia saber que seu oferecimento era ridículo.
- Sua mãe não costuma puxar fumo e você pare de
bancar o sabido -eu disse.
- Mas este fumo é ouro puro, papai. Tem certeza de que não
quer experimentar?
- Não, obrigado.
- Mas não vai lhe fazer nenhum mal...
- Ouça: eu puxava fumo antes de você nascer, no tempo
em que se podia comprar maconha por muito menos da metade do que vocês
pagam hoje.
- Ah, que boa época! - disse Denny, provocante.
- Conte como era.
- Não há muito o que contar. O fumo expande a mente
de quem tem cérebros retardados. Você precisa dela porque
é um débil mental.
- Obrigado.
Ele apagou o cigarro na areia, tirou os sapatos e as meias e caminhou
em direção à água. Harriet contemplouo
com um olhar enternecido.
- Não foi muito gentil de sua parte - observou.
Levantei-me e segui-o. Denny voltou-se, quando chapinhei pela água
que subia, depois continuou pela praia. Alcancei-o e passei o braço
em torno de seus ombros. Ele desvencilhou-se.
- Me deixe em paz.
- Desculpe.
- Lá vem você de novo com suas desculpas. Você
sempre se arrepende após insultar alguém. Primeiro faz
questão de ofender, depois pede desculpas.
- Tento ser honesto.
- Honesto? Você é sinuoso como uma cobra. Fala e distorce
tudo até conseguir o que quer. É o duas caras mais filho
da mãe que conheço.
Eu estava a ponto de desculpar-me mais uma vez, mas me controlei a
tempo. Caminhamos mais alguns metros pela beira da água. Nossos
pés muito brancos metiam-se por entre o
fino bordado da espuma que recobria a areia escura. Chegamos finalmente
aos destroços de um barco que emergia da água, recoberto
de algas e rodeado de gravetos trazidos pelo mar. Denny não
queria minha companhia, mas eu, teimoso, permaneci lá. Ele
recostou-se no velho barco e acendeu um cigarro. Não sabia
o que lhe dizer e o mesmo acontecia com ele.
- Vamos voltar - propus.
- Estou cheio de você, papai.
- Ah, é?
- Pare de me chamar de débil mental. Desde quando me lembro,
até mesmo nos tempos de jardim-de-infância, você
já me chamava de débil mental. Por que não pára
com isso de uma vez?
- Está certo.
Talvez fosse por causa do fumo. Talvez a irrupção de
sua raiva, a noite quente e aquela curiosa circunstância tivessem
servido para nos aproximar nesse momento. Talvez .Denny tivesse querido
dizer-me aquilo durante anos, mas o momento e o estado de ânimo
apropriados não tinham surgido. Agora, porém, ele se
pronunciara e aquilo parecia uma declaração preparada
com muito cuidado, que ele reservara para a ocasião propícia.
- Papai, você é um péssimo escritor .
Não era possível que meu filho Denny estivesse dizendo
semelhante coisa. Só podia ser efeito da maconha, como fora
efeito do vinho quando eu enfrentara meu pai, aos vinte anos. Ele
me atormentara durante anos e, na véspera do Natal, cheio de
hostilidade e de vinho, enfrentei-o. Lutamos na entrada de casa, em
North Sacramento, rolamos no pó, nos chutamos, nos estapeamos
e nos xingamos até que os vizinhos vieram nos apartar.
Agora aquela véspera de Natal voltava.
- Acho que mamãe escreve melhor do que você. Li seus
romances. São piegas, sentimentais e olhe que ainda não
falei de seus roteiros.
- Os roteiros não são lá essas coisas -reconheci.
- Por que você virou escritor, papai? Como conseguiu que publicassem
o que escrevia?
- Ora essa, que merda! Não sou tão ruim assim! H. L.
Mencken me achava bem bom. Ele foi o primeiro a editar o que eu escrevia.
- Você não está com nada, papai. Com nada.
- O Tirano não é um livro mau e teve ótimas críticas.
- Quantos exemplares vendidos?
- Não muitos, mas deu um bom filme.
- Você o assistiu recentemente na televisão?
Deixei aquela insinuação passar .
- Mais alguma coisa? - perguntei.
- Sim. Você é um bolha.
- Já esperava por essa.
Ele jogou o cigarro fora e fomos ao encontro do pessoal.
- Ter o respeito de seus filhos é algo que faz um homem sentir-se
bem - comentei. - Obrigado por todas as coisas boas que você
me disse esta noite.
- O prazer foi todo meu, papai.

|