Por
Mário Satto
Quando
os amigos do sebo 264 me puseram a par de um boato que circulava
à boca pequena no
submundo editorial - que havia uma biografia de Charles Bukowski
no prelo de uma editora brasileira -,comecei a me
perguntar se valeria a pena ler a biografia de um escritor cuja
obra é quase inteiramente autobiográfica.
Eu tinha conhecido Bukowski por acaso, numa tarde cinzenta, quando
encontrei Misto Quente na seção dos B da biblioteca do Campus.
Depois fui cavucando nos sebos outras coisas de Bukowski: Cartas
na rua, Factotum, Notas de um velho safado...Eu sabia
que com Pulp e O capitão foi almoçar e os marinheiros
tomaram conta do navio, Bukowski pôs o mesmo ponto final em
sua obra e em sua autobiografia. E agora uma biografia..., misericórdia!
Alguém estava querendo levar vantagem sapateando sobre
o túmulo do velho Buk?!
Quando soube que a biografia estava nas livrarias, a curiosioade
ultrapassou todos os escrúpulos. E lá fui eu em busca do uma livraria,
para "subtrair" o volume e "aliviar" o peso
das prateleiras (coitadinhas!). Aos desavisados, devo informar
que esse método de aquisição é cada vez mais arriscado na era
dos códigos de barra e da vigilância eletrónica. Em suma, pode
dar cana.
Li o volume de uma sentada. Howard Sounes, o biógrafo, produziu
um texto fluente e límpido, sem nenhuma afetação estilística,
sem tentar, como é comum em se tratando de biografias de escritores
, imitar o estilo do biografado. Também evitou o pretenso virtuosismo
técnico que normalmente carrega o texto biográfico com notas de
rodapé e referências documentais. A intenção de Sounes (ele a
declara na introdução) "foi fazer uma narrativa que pudesse ser
lida, antes de mais nada, como uma boa história, já que a vida
de Bukowski é uma história extraordinária...".
Era de se esperar que o biógrafo se empenhasse no esforço passional
de desfazer a imagen que o escritor criou de si próprio através
de sua obra, desconstruir o mito valendo-se, para tanto, de minúcias
documentais. Sounes, mais uma vêz, soube evitar o caminho mais
fácil e menos original. O Bukowski que aparece retratado na biografia
é o mesmo tipo humano que conhecemos em suas obras, o mesmo personagem
picaresco, com a mesma verve cômica e dramática de seu alterego
literário, Henry Chinaski. Reduzida a uma perspectiva cronológica
e factual, a vida de Bukowski é ainda a vida de um escritor outsider,
nascido e criado á margem do mecanismo devorador da vida americana.
Um sobrevivente disposto a morrer abraçado à sua arte.
De resto, a biografia de Bukowski contém os episódios picantes
de sua trajetória acidentada; os depoimentos nem sempre favoráveis
de algumas de suas ex-mulheres; relatos de situações envolvendo
editores e outros escritores de sua geração, como os da geração
beat (com os quais ele fez questão de não se alinhar), John
Fante, (o seu ídolo literário da juventude, a quem Bukowski
foi visitar na cama de um hospital para encontrá-lo já cégo
e com as pernas amputadas), e Norman Mailer, a quem Bukowski desfiou
para uma briga durante uma festa, tendo perdido, com a recusa
do combate por Mailer, o assunto para mais um belo conto que ele
escreveria.

"Usava a garrafa e a máquina. Gostava de ter um pássaro
em cada mão, ao diabo com o mato." Bukowski, in Hollywood.
A
feliz idéia de pontuar o texto da biografia com alguns dos melhores
poemas de Bukowski e com alguns de seus desenhos escatológicos
oferece ao leitor brasileiro a oportunidade de ter um contacto
inédito com essa parte da obra do velho Buk.
Charles
Bukowski: vida e loucuras de um velho safado é, enfim, uma
das mais louváveis iniciativas editoriais do ano. Valeu a pena.
Charles
Bukowski - vida e loucuras de um velho safado,
de Howard Sounes
Tradução de Tatiana Antunes
Conrad
livros, 2000

|