Por
Mário Satto
Nos
últimos anos de vida, Bukowski mantinha-se magnânimo na pele de
um velho sobrevivente de uma guerra sórdida com o mundo. Foi nesse
período que ele escreeveu suas duas últimas obras, que foram publicadas
postumamente: Pulp e 0 capitão
o saiu para o almoço eos marinheiros tomaram conta do navio
0 capitão é o diário que Bukowski escreveu sob encomenda para
o seu editor; é um diálogo existencialista com a vida e a morte,
o balanço autoconsciente de uma vida improvável diante da morte
iminente. Nas páginas escritas no dia 04 de agosto de 1992, Bukowski
faz referência ao outro livro que estava escrevendo:
"Estou
preocupado com minha novela. É sobre um detetive. Mas eu fico
colocando-o em situações quase impossíveis e daí tenho que tirá-lo
delas. Às vezes, penso numa solução quando estou no hipódromo.
Sei que meu editor está curioso. Talvez ele ache que o texto
não seja literário. Digo que qualquer coisa que faço é literário.
Ele já deveria confiar em mim. Bem, se ele não quiser o texto,
vou despejá-lo em outro lugar. Vai vender tão bem quanto qualquer
coisa que escrevi, não porque é melhor, mas porque é tão bom
quanto antes e meus leitores malucos estão prontos para ele"
É
essa e postura que Bukowski soube manter até o fim da vida diante
dos editores e da crítica . A última palavra é sempre a dos leitores.
Pouco importa que os editores e os críticos menosprezem o valor
literário de suas obras, contanto que elas correspondam às expectativas
de seus leitores "malucos".
Foi por causa dessa postura segura e independente que Bukowski
pode vencer o medo que normalmente acomete os escritores veteranos:medo
de falhar, medo de perder o vigor da Escrita (para aqueles que
já tiveram algum). Na dúvida, o escritor veterano não se arrisca
e morre calado.
Mas escrever, para Bukowski, era correr risco, e sempre fora assim,
desde que abandonou sua carreira (!!) nos correios para "passar
manteiga na torrada" e "alimentar o gato" apenas escrevendo.
E, se é assim, por que não enfrentar o desafio de
de
tingir com literatura um género normalmente classificado como
não literário.
Pulp é a designação que se dá às revistas ou livros sensacionalistas,
de entretenimento, normamelmente impressos em papel grosseiro,
sem acabamento, e vendidos em bancas de jornal. Uma das versões
mais populares de pulp fictions são as histórias policiais quase
sempre protagonizadas por um detetive solitário e durão, uma espécie
de marginal a serviço da lei, como os célebres personagens criados
por Dashiell Hammett e Raymond Chandler, dois autores que deram
uma aura literária ao género.
Bukowski adota o estilo pulp, a começar pelo próprio título de
sua última obra, não só como paródia, mas como reafirmação da
condição marginal a que sempre esteve sumetido como indivíduo
e escritor. Está mantendo-se, portanto, fiél à sua identidade.
Pulp
é uma obra específica no repertório de Bukowski por diversas razões.
É sua última obra, a única que não é explitamente
autobiográfica, embora a ainda narrada em primeira pessoa.
Além disso, o livro apresenta pistas importantes para quem
tenha interesse na biografia do autor, especialmente nas sutilezas
de sua personalidade, em plena maturidade, na fase final de sua
vida.

Na mesma
época circulou no Brasil a revista "Detetive", dirigida
por Nelson Rodrigues
O livro
narra episódios da vida de Nick Belane, um detetive particular
de Los Angeles. Um cara durão, um canastrão cínico e decadente
que divide o seu escritório com as moscas e as baratas. O aluguel
do escritório está, é claro, atrasado.Belane não tem tido sorte
apostando nos cavalos do hipódromo. A sorte nunca sorriu para
ele. O locatário e o bookmaker o perseguem. Sua carteira
de motorista venceu, e ele não passou na prova (escrita!)
para renová-la. Ele passa os dias coçando o saco e exterminando
as moscas que pousam na mesa com uma edição velha de Programa
de Turf. Na gaveta,bem ao alcance da mão, há uma lista telefônica
escangalhada, uma garrafa de vodca e uma Lugger (porque "um detetive
sem um ferro é como um garanhão de camisinha. Ou um relógio sem
ponteiro"). Belane, Nick Belane, detetive.
Um dia uma gostosa, toda peitos e pernas, "um glorioso barato
de carne", vem ao escritório de Belane. Seu nome é Dona Morte.
Ela tem um trabalho para Belane: encontrar Celine, o escritor.
Celine está morto, Belane diz, Celine e Hemingway
morreram com um dia de diferença, há 32 anos. Dona Morte tem Hemimgway,
mas tem um bloqueio quanto a Celine. Belane precisa encontrá-lo,
senão...
Um outro cliente aparece com outra tarefa estranha para Belane:
encontrar o Pardal Vermelho. Ele não diz nada sobre o Pardal
Vermelho, não há pistas, mas Belane precisa encontrá-lo, será
pago por isso. O resto de trama envolve vigaristas de todas as
marcas, perseguições, assassinatos, brigas de bar e até uma conspiração
alienígina. É intencionalmente um enredo sensacionalista, cínico,
escatológico.
Mas é nesse enredo que Bukowski interpõe as questões que o instigavam
no fim da sua vida. Uma delas é a questão de encontrar e estabelecer,
diante de todos e de si mesmo sua identidade como escritor. Ao
contrário do que se pode pensar, Bukowski não era imune à ambição
literária de propor um estilo, e há evidências suficientes
em sua obra para provar o contrário. Ele escreveu uma obra num
estilo que dialoga esteticamente com referências como Hemingway,
Thomas Wolfe, John Fante e
Celine. A tarefa absurda do detetive Belane (encontrar Celine,
um esccitor já morto há 32 anos) é pois uma metáfora para o ajuste
de contas do escritor com suas influências e a busca da identidade
de sua escrita.
Dona Morte, a gostosona fatal, é a personificação do sentimento
que acompanhava Bukowski no período em que escreveu Pulp
e O capitão...: a consciência de estar vivendo os seus
últimos dias, de estar perto de um acontecimento inexorável, A
MORTE, depois de ter sobrevivido às suas investidas por diversas
vezes ao longo da vida. Vale ressaltar que o livro foi escrito
nos intervalos entre as sessões de quimioterapia a que
Bukowski se submetia por causa do câncer que contraíra
e que o mataria meses mais tarde. Mas ele continua encarando as
circunstâncias com humor, irreverência e um novo e curioso pendor
metafísico pelo imponderável, talvez uma espécie
de revelação final no termo de sua vida louca (?!):
algo tão misterioso ou inusitado quanto o Pardal Vermelho.
Pulp,
de Charles Bukowski
Tradução de Marcos Santarrita
L&PM
editores,1995

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