Extraído
de Misto Quente - A juventude de Henry Chinanski
Editora Brasiliense, 1984
Estava
indo para casa depois das aulas, pela colina de Westview. Nunca
tinha livro para carregar. Passei nos meus exames apenas ouvindo
o que diziam durante as aulas e adivinhando as respostas. Eu nunca
tive que me matar de estudar para enfrentar os exames. Podia conseguir
os meus C. E, enquanto descia a ladeira, bati numa teia de aranha
gigante. Eu sempre estava fazendo essas coisas. Fiquei ali arrancando
aqueles fios pegajosos e procurando pela aranha. Então a vi: uma
filha da puta. preta, grande e gorda. Esmaguei-a. Havia aprendido
a odiar aranhas. Quando eu fosse para o inferno seria comido por
uma aranha.
Durante toda a minha vida, naquele bairro, eu vivi batendo em
teias de aranha, fui atacado por passarinhos e tinha morado com
meu pai. Tudo era eternamente triste, lúgubre e maldito. Mesmo
o tempo era insolente e cachorro. Ou ficava insuportavelmente
quente semanas a fio, ou então chovia e, quando chovia, chovia
por cinco ou seis dias. A água subia pelos gramados e invadia
as casas. Quem planejou o sistema de drenagem foi muito bem pago
pela sua total ignorância sobre o assunto.
E minhas próprias coisas eram tão más e tristes, como o dia em
que nasci. A única diferença era que agora eu podia beber de vez
em quando, apesar de nunca ser o suficiente. A bebida era a única
coisa que não deixava o homem ficar se sentindo atordoado e inútil
o tempo todo. Tudo mais te pinicando, te ferindo, despedaçando.
E nada era interessante, nada. As pessoas eram limitadas e cuidadosas,
todas iguais. E eu teria que viver com esses putos pelo resto
de minha vida, pensava. Deus, eles todos tinham cus, e órgãos
sexuais e suas bocas e seus sovacos. Eles cagavam e tagarelavam
e eram tão inertes quanto bosta de cavalo. As garotas pareciam
boas à distancia, o sol provocando transparencias em seus vestidos,
refletido em seus cabelos. Mas chegue perto e escute o que elas
tem na cabeça sendo vomitado pelas suas bocas. Você ficava com
vontade de cavar um buraco sobre um morro e ficar escondido com
uma metralhadora. Certamente eu nunca seria capaz de ser feliz,
de me casar, nunca poderia ter filhos. Mas que diabo, eu nem conseguia
um emprego de lavador de pratos.
Talvez eu pudesse ser um ladrão de bancos. Alguma porra. Alguma
coisa flamejante, com fogo. Você só tinha direito a uma tentativa.
Por que ser um limpador de vidraças?
Vi outra dessa aranhas grandes e pretas. Estava mais ou menos
na altura do meu rosto, na sua teia, bem no meu caminho. Peguei
o meu cigarro e enfiei nela. A aranhona tremeu e se jogou, balançando
a folhagem. Saltou da teia e caiu na calçada. Assassinas covardes,
todas elas. Esmaguei-a com o meu sapato. Que dia proveitoso, tinha
matado duas aranhas, e desequilibrado a balança da natureza -
agora nós seríamos todos comidos pelos carrapatos e moscas.
Fui descendo o morro, estava perto do fundo quando um arbusto
grande começou a se mexer, O Rei das Aranhas estava atrás de mim.
Corri para enfrentá-lo. Minha mãe apareceu por detrás da folhagem.
- Henry, Henry, não vá para casa, não vá para casa, seu pai vai
matá-lo!
- Como é que ele vai fazer isso? Eu posso lhe chutar a bunda!
- Não, ele está furioso, Henry! Não vá para casa, ele vai te matar!
Estive esperando aqui por horas!
Minha mãe tinha os olhos arregalados de medo e eles eram lindos,
grandes e castanhos.
- O que é que ele está fazendo tão cedo em casa?
- Ele ficou com dor de cabeça, e o dispensaram à tarde!
- Eu pensei que você estava trabalhando, que tinha achado um novo
emprego.
Ela tinha conseguido um emprego de governanta.
- Ele apareceu e me pegou! Está furioso! Ele vai matar você!
- Não se preocupe, mamãe, se ele mexer comigo eu lhe darei um
pontapé na bunda, prometo para a senhora.
- Henry, ele achou as suas historietas e as leu!
- Eu nunca pedi pra que ele as lesse.
- Ele as encontrou na gaveta! E leu elas, ele leu todas elas!
Eu tinha escrito umas dez ou doze histórias. Dê uma máquina de
escrever a uma pessoa e ela se tomará um escritor. Tinha escondido
as minhas histórias debaixo do forro de papel da minha gaveta
de meias e cuecas.
- Bom - eu disse - o velho ficou fuçando e acabou queimando os
dedos.
- Ele disse que vai te matar! Disse que nenhum filho seu poderia
escrever histórias como aquelas e continuar vivendo sob o mesmo
teto com ele!
Eu a peguei pelo braço.
- Vamos para casa, mamãe, e ver o que ele faz...
-Henry, ele atirou todas as roupas no jardim, toda a sua roupa
suja, sua máquina de escrever, sua valise e suas histórias!
- Minhas histórias?
- Sim, elas também...
- Eu vou matá-lo!
Eu me afastei dela e atravessei a Rua 21 em direção à Avenida
Longwood. Ela veio atrás.
- Henry. Henry, não vá lá.
A pobre mulher me agarrava pela camisa.
- Henry, escute, arrume um quarto para você em algum lugar! Heniy,
eu tenho dez dólares! Pegue esses dez dólares e arrume um quarto
para você!
Parei e me virei. Ela estava segurando os dez dólares.
- Esqueça. Eu vou mesmo.
- Henry, pegue o dinheiro! Faça isso por mim! Faça pela sua mãe!
- Bem, está bem...
Peguei os dez e coloquei no bolso.
- Obrigado, é muito dinheiro.
- Tudo bem, Henry. Eu te amo, Henry, mas você deve ir embora.
Ela
correu na minha frente enquanto continuei a andar para casa. E,
então, eu vi: tudo estava espalhado pelo jardim, toda a minha
roupa limpa e a suja também, a valise aberta, meias, cuecas, pijamas,
um roupão velho, tudo jogado ali, no jardim, na rua. E eu vi meus
manuscritos sendo soprados pelo vento, na sarjeta, espalhados
por todos os lugares.
Minha
mãe entrou correndo pelo corredor lateral e eu gritei para ela
de maneira que ele também ouvisse:
- Diz pra ele sair que eu vou lhe arrancar sua maldita cabeça
fora!
Em
primeiro lugar eu corri atrás dos meus manuscritos. Foi o golpe
mais baixo que ele poderia fazer comigo. Eles eram uma coisa na
qual ele não tinha o direito de mexer. Enquanto eu ia pegando
página por página, da sarjeta, do jardim e da rua, comecei a me
sentir melhor. Catei todas as folhas que eu pude, coloquei-as
na valise, usando um sapato como peso, e então fui salvar a máquina
de escrever. Ela tinha caido fora do seu estojo mas parecia bem.
Olhei para os meus trapos espalhados. Deixei a roupa suja, deixei
os pijamas pois os dois eram dele e tinham sido passados para
mim depois de velhos. Não havia muito para colocar na mala. Fechei-a,
peguei a máquina de escrever e comecei a andar. Pude ver dois
rostos me observando por detrás de uma cortina. Mas esqueci rapidamente,
andei até a Longwood, atravessei a 21 e subi a velha colina de
Westview. Não estava me sentindo muito diferente do que o habitual.
Não estava nem excitado nem deprimido; tudo isso parecia ser apenas
uma continuaçào. Estava indo pegar o bonde W, descer e tomar outro,
e ir para algum lugar do centro da cidade.

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