Por
Mário Satto
O
velho escritor sobrevivente olha incrédulo para si mesmo. Como
um prisioneiro que esteve anos trancafiado numa solitária, ele
tenta familiarizar-se com o rosto refletido no espelho. Já não
confia nos próprios olhos (pouca coisa resta em que possa confiar).
Tateia com a mão lívida o rosto repleto de sulcos profundos; tenta
distinguir o que são rugas, o que são cicatrizes, e desiste. Tudo
afinal são cicatrizes, cicatrizes do tempo. Ocorre-lhe um título
para o livro de poemas que está acabando de escrever: Poemas
da última noite na terra. "Era adequado ao conteúdo, poemas
sobre o fim, doença e morte. (...) Talvez um pouco de humor."
São os últimos capítulos da vida de um grande escritor americano:
Charles Bukowski. Do alto de seus mais de 70 anos intensa e milagrosamente
vividos, ele olha em retrospecto para a vida que levou nos bares
enfumaçados e nas ruas da América, onde ele não viu nenhuma esperança.
Olha para si mesmo e se pergunta como foi possível sobreviver
ao pátio da escola, à enfermaria dos indigentes, à sarjeta fétida
de onde ele bebeu, a mancheias, do caldo da vida americana.
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Desenho de Crumb para o livro
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A
Morte o procurou desde cedo, mas deve tê-lo encontrado sempre
inconsciente, de porre, ou bêbado o suficiente para não levá-la
a sério e afrontá-la com um sorriso sarcástico e ébrio. Talvez
tenha sido essa capacidade de sorrir diante da Morte que a seduziu,
ou a deixou curiosa, porque ela o deixou viver por mais de setenta
anos, mas só para deleitar-se soprando seu hálito gélido na nuca
do velho escritor septuagenário.
Mas
o velho Buk não se deixa intimidar. Em O capitão saiu para
o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio, o diário
de alguns dos seus últimos dias, (L&PM, com ilustrações de Robert
Crumb), Bukowski está mais existencialista, reflexivo, dividindo
o seu tempo entre os "cavalinhos" no hipódromo, os nove gatos
que abriga em casa e a "brincadeira" de sempre com as palavras.
A esposa, Linda Bukowski, que não é tão linda assim mas tem a
metade da idade do velho escritor, ministra-lhe uma receita de
bebidas composta de vinho, cerveja e uma quantidade moderada dos
destilados mais fortes. Mas ainda é o Bukowski de sempre, com
um estilo literário que parece uma seqüência de porradas, como
um Camus com o dobro da virilidade.
O
Capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio,
de Charles Bukowski
Tradução de Bettina Gertrum Becker
L&PM
editores, Porto Alegre, Brasil,1999

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